5 Problematizações
O estudo das heresias na Idade Média, como se relatou anteriormente, permite aos historiadores se aperceberem não apenas do surgimento destas novas formas de religiosidade que foram classificadas como “heresias” e como tal reprimidas; estes movimentos permitem a percepção de inúmeras outras questões transversais. Uma delas, por exemplo, é a questão da Reforma Gregoriana. A Reforma da Igreja na Idade Média surge como uma necessidade imperativa diante das transformações do período feudal, do desenvolvimento das relações entre o poder religioso e o poder temporal, da emergência das novas formas de religiosidade e de sensibilidade que começam a se desenvolver principalmente a partir do século XII. Reformar implica trabalhar a transformação. Como bem o sabemos, estas transformações têm os seus limites. As heresias permitem precisamente que os historiadores compreendam os limites da Reforma Gregoriana. A partir de certo ponto, uma transformação nas práticas religiosas, nas suas representações e formas de pensar, pode deixar de ser vista como um desejo justo de reformar – isto é, de adaptar a Igreja aos novos tempos – para passar a ser visto como pensamento herético.
De qualquer forma, se a Reforma Gregoriana surgiu como resposta da Igreja às novas transformações históricas e sociais, as heresias também surgiram do mesmo modo. Elas foram respostas a novas questões que eram historicamente colocadas, para retomar a questão levantada no debate do Colloque de Royaumont (CHENU, 1968). A heresia, portanto, foi em muitos casos a maneira que diversos cristãos da Idade Média encontraram para enfrentar os desafios do seu tempo. Funcionaram também como instrumentos úteis para que os mandatários da Igreja testassem o seu poder, verificassem até onde podiam avançar no que concerne à busca de uma unidade cristã. O surgimento dos movimentos heréticos e as diversas formas geradas no seio da hierarquia eclesiástica para enfrentar estes mesmos movimentos apresentam-se ambos como respostas a novos problemas.
A questão do poder da Igreja, aliás, corta transversalmente a história das heresias. As fontes nos contam aqui a história de um poder sacerdotal que é crescentemente questionado. Este questionamento do poder sacerdotal, da necessidade dos representantes eclesiásticos como os intermediários necessários entre homem e Deus – questionamento que seria tão caro aos reformadores do século XVI – também revelam simultaneamente os limites e a força das hierarquias eclesiásticas, que não podiam aceitar a recusa desta intermediação sob risco de se deteriorarem as próprias condições que permitiam a existência da Igreja enquanto instituição bem definida. Uma análise comparativa dos vários movimentos heréticos e das novas formas de religiosidade, com atenção voltada para a intensidade e a forma com que eles questionam a autoridade e intermediação da Igreja, também permite dar a entender por que alguns destes movimentos foram tão violentamente reprimidos, enquanto outros foram tolerados, ou mesmo reincorporados dentro da estrutura eclesiástica e da Cristandade aceita como tal pelas hierarquias eclesiásticas. Comparar os vários movimentos heréticos entre si é elaborar também um estudo aferido do poder e das resistências ao poder. Dizíamos que a heresia pode ser examinada em alguns períodos como fenômeno coletivo, e não mais apenas ao nível das disposições psicológicas individuais, das decisões tomadas pelos homens isoladamente.
A história da afirmação crescente da heresia como fenômeno coletivo, conforme vimos, pode ser entrevista em um estudo comparativo das fontes que começam a aparecer no ano 1000 e que já no século XIII revelam níveis consideráveis de difusão coletiva, ao ponto de podermos falar então em verdadeiras comunidades heréticas.
É oportuno acrescentar que, se os historiadores podem estudar a oposição entre heresia e ortodoxia, há heresias que se opõem reciprocamente. Para este caso, seria oportuno lembrar a oposição entre catarismo e valdeísmo. Neste aspecto em particular, Christine Thouzelier, em sua obra Catarismo e valdeísmo, destaca o caráter tradicional e a posição radicalmente antimaniqueísta, e portanto anticátara, dos valdenses (THOUZELIER, 1966: 15). Em uma imagem bastante correta sobre a oposição entre cátaros e valdenses – e na verdade entre os dois filões heréticos que surgem no século XII – Pierre Chaunu discute a ideia de que os cátaros contestam o conteúdo, enquanto os pobres de Lyon (os valdenses) contestam a forma (CHAUNU, 1993: 212). Isto é, os primeiros são típicos representantes do filão herético que propõe concepções cristãs radicalmente distintas da ortodoxia papal, gerando com isso novas práticas que rejeitam o sistema de sacramentos da Igreja e mesmo, para o caso dos cátaros, chegando a se organizarem praticamente numa anti-igreja.
Enquanto isso, os valdenses representam o segundo filão herético, aquele que, em pouco ou nada diferindo da concepção religiosa sustentada pela cúria papal, reivindicam o direito da pregação leiga, da ultrapassagem dos intermediários sacerdotais impostos pela Igreja, para além de um modo de vida mais próximo da vita evangélica, que fora diretamente inspirado nos textos bíblicos e na imitação de Cristo. Eis aí, portanto, um exemplo de heresias que se contrapõem em determinados aspectos, mas que por outro lado foram rejeitadas pela ortodoxia papal porque, no seu aspecto mais irredutível, opõem-se ambos à “grande estrutura visível da igreja mediadora coletiva” (CHAUNU, 1993: 212).
Contradições entre heresias específicas e fenômenos que lhes foram contemporâneos também constituem objeto de interesse historiógráfico. Depois de ressaltar similaridades entre valdeísmo e franciscanismo – ancoradas nas origens comuns em um meio urbano e mercantilista, em um mesmo apelo à perfeição através da pobreza, em uma mesma distância em relação ao “aparelho” clerical, e na intenção de organizar uma fraternidade missionária – Pierre Chaunu destaca as distâncias entre o valdeísmo e a escolástica através do ponto-chave da rejeição da cúria papal, que foi a tradução da Bíblia para a língua vulgar por ordem de Valdés. Assim Chaunu situa a sua reflexão sobre as contradições inevitáveis entre a proposta valdense e o contexto de projeção da escolástica, inclusive a partir dos meios franciscanos:
Devemos ter presente que 1080 é o ponto de partida de uma verdadeira explosão de uma escolástica majestosa, constituída como “estrutura autônoma organizada”. Como imaginar, nestas condições, a circulação de um texto em língua vulgar? Existe uma contradição, na sua delimitação temporal, entre a reivindicação completamente prematura dos pobres de Lião e os alicerces de um gigantesco edifício conceitual que culmina em Santo Tomás de Aquino, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham. Tudo, na corrente valdense, é prefigurativo e anacrônico (CHAUNU, 1993: 211).