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A abundância de fontes sobre as heresias produzidas no âmbito da Igreja oficial, em oposição desproporcional às poucas fontes que nos chegaram provenientes dos próprios movimentos heréticos, também coloca novos problemas, como o da difusão do pensamento herético no período medieval. Para períodos posteriores, já em uma modernidade que recupera uma Inquisição que se materializou historicamente talvez em níveis ainda mais violentos, os historiadores puderam desenvolver métodos criativos para a percepção destes modos de difusão, muitas vezes ancorados na oralidade, mas que puderam deixar seus rastros em processos já mais pormenorizados e conservados em maior quantidade nos arquivos, tal como foi o caso do célebre estudo de Carlo Ginzburg sobre um camponês herético da Itália no século XVI. Mas aqui já estaremos, certamente, em um novo período para o qual se apresentam novas fontes, e para o qual as chamadas heresias já se situam em novo contexto histórico que breve traria a Reforma Protestante como um acontecimento impactante e definitivo para a história subsequente da religião cristã no Ocidente Europeu.

6 Novos tempos: as rupturas no seio do franciscanismo durante a Baixa Idade Média

O quadro de heresias e cismas, que irá caracterizar os séculos XIV e XV, representa a transição para uma nova época em que se afirmará cada vez mais a impossibilidade de se concretizar o projeto universal de uma Igreja cristã coordenada pelo papa. Obviamente que, mesmo aqui, ainda estaremos longe do tipo de ruptura definitiva que se consolidará com o processo histórico da Reforma Luterana, particularmente a partir de 1521 – quando a Dieta de Worms irá declarar Lutero herege e fugitivo, evidenciando que já não há reversibilidade possível no que concerne aos definitivos abalos relacionados às ambições papais de impor seu projeto universal de controle sobre o mundo cristão e de conter o ímpeto da Reforma Protestante. Em 1555, com a Paz de Augsburgo, com o reconhecimento pelo imperador de que já existiam duas confissões distintas na Alemanha – a Católica e a Luterana –, a ruptura no mundo eclesiástico cristão já estaria consolidada.

De todo modo, retornando ao recorte temporal e ao tema mais específico deste ensaio, pode-se dizer que a intensificação do ambiente de cismas e heresias dos séculos XIII e XIV já havia introduzido na história da Igreja um momento bastante significativo, no qual o projeto universal do papado se viu bastante abalado. Estes novos tempos, contudo, já vinham sendo de certo modo preparados no século anterior. De fato, as últimas décadas do século XIII já anunciam mais ou menos claramente as divisões que estariam por vir. Apenas para dar um primeiro exemplo, teremos nesse momento em uma nova etapa da história do franciscanismo, e também do movimento mendicante como um todo.

Os primeiros sinais da crise surgem no campo da cultura oficial da Igreja: o pensamento escolástico. Já em 1277, a escolástica – que abrigava a parte mais letrada das ordens mendicantes na pessoa dos mestres universitários franciscanos e dominicanos – sofreria um forte abalo com a condenação de alguns textos que tradicionalmente constituíam o corpo canônico do qual os filósofos e teólogos deveriam extrair a matéria de seus problemas acadêmicos. A condenação atinge alguns textos aristotélicos e as posições mais racionalistas, constituindo na verdade a expressão de divisões internas que acabaram por opor aos filósofos escoláticos os teólogos escolásticos mais conservadores. Surgiriam, ademais, novas correntes de pensamento religioso, como o misticismo de Eckhart, o nominalismo de Ockham, ou o pensamento filosófico de João Duns Escoto.

Mas as grandes rupturas estariam por se dar fora das disputas acadêmicas que constituíam o mundo escolástico dos universitários. O Concílio de Lyon marca um ponto de virada em diversos níveis, pois o papado resolvera intervir ainda em uma questão muito cara à maioria dos franciscanos. Ao dispensar do “voto da pobreza” um franciscano chamado Jerônimo Áscoli, o papado trouxe à tona nos últimos anos de século XIII uma questão que já fervilhava há algumas décadas no seio da Ordem dos Menores. Desde a morte de São Francisco de Assis, estava no ar a questão do rigor com os quais os franciscanos deveriam seguir o modelo de vida inspirado pelo seu fundador. A ideia da “pobreza voluntária” – não apenas no âmbito individual, como ocorria em diversas ordens monásticas, mas também no âmbito coletivo – constituía um dos principais pontos de originalidade do franciscanismo. Por outro lado, o que permitira a São Francisco concretizar os radicais ideais evangélicos de seu grupo no interior da estrutura eclesiástica fora a sua declaração de “obediência ao papado” como outro de seus princípios fundamentais, e o Testamento que deixa aos seus companheiros franciscanos reitera isto uma última vez.

No final do século XIII os acontecimentos precipitam essa contradição: seria facultado ao papado, a quem os franciscanos deviam obediência primordial, o direito de interferir neste outro princípio fundamental da Ordem que era a questão da recusa em ter bens mesmo em comum?

A corrente dos “espirituais” estabelece-se precisamente entre aqueles que cerram fileiras em torno dos princípios fundadores da pobreza franciscana e do ideal de seguir à risca o modelo de vida de Francisco de Assis. Alguns vão além. Embora bulas papais posteriores tenham expressado a tentativa de amenizar o conflito que surgira tão enfaticamente com o Concílio de Lyon (o Exiit qui seminat de Nicolau III, proferido em 1279, e o Exultantes de Martinho IV, datado de 1283), um grupo mais radical decidiu recorrer mais tarde ao Papa Celestino IV, para que este lhes autorizasse a saírem da Ordem para constituírem novo grupo. Os papas subsequentes decidiram, contudo dispersá-los ou persegui-los, o que se dá mais enfaticamente sob João XXII (1316-1334). Uma declaração deste último papa sobre a Regra Franciscana conclui enfaticamente com a seguinte afirmação: “Grande é a pobreza, mas maior é a integridade. O máximo é o bem da obediência” (Quorundam exigit, 1317).

Na bula Santa Romana (1317), João XXII chega a condenar alguns dos grupos mais radicais de espirituais como rebeldes, associando estes que seriam conhecidos como “fraticelli” a outros grupos heréticos como os beguinos. Este longo episódio que se iniciara em fins do século XIII e atingira a segunda década do século XIV, passando por uma sequência de papas até chegar a João XXII, expõe claros sintomas não apenas de um movimento franciscano que começa a se fragmentar e perder sua identidade inicial, mas também de uma Santa Sé hesitante e dividida que logo enfrentaria suas próprias cisões, sem contar as divisões que também começariam a ameaçar de fragmentação a Igreja como um todo. O século XIV será de fato um século de cismas, de propostas reformistas que ainda não sairiam vitoriosas, de revivescência de antigas e novas heresias.