Para a questão que nos interessa, as contradições entre o movimento franciscano mais radical e o papado trariam ainda outros lances que não deixariam de envolver também o poder temporal, já que o Imperador Luís da Baviera tomaria o partido dos franciscanos contestadores. Esta questão, e outros interesses mais complexos envolvendo as antigas contradições entre império e papado, desembocariam no Grande Cisma.
Assim será o segundo século de existência do franciscanismo: um século XIV que praticamente se abre com as terríveis fomes de 1315 e 1316, com a crise de um mundo superpovoado que já enfrentava seus limites produtivos e que dentro em breve se veria abatido pela Grande Peste de 1348, e que ao mesmo tempo logo estaria abalado pela partilha de uma Igreja Católica ameaçada por cismas papais e sacudida por novas propostas reformistas mescladas a movimentos sociais violentamente sufocados. Neste novo mundo em crise, a imagem de São Francisco parte-se em novas possibilidades. Dos “espirituais” – aquela corrente franciscana que pretendia seguir rigorosamente o exemplo de São Francisco para daí fazer da pobreza um absoluto – não demoraria muito a surgirem movimentos desejosos de realizar na terra a “utopia franciscana”, sob o prisma de uma eclesiologia radicalmente anti-hierárquica (VAUCHEZ, 1994: 133).
A condenação daqueles que logo seriam denominados fraticelli retrata bem este período de tensões sociais do qual partiriam tanto os mais desesperados anseios de libertação, como também uma violenta ação repressora, que adentra o século XIV dando continuidade ao projeto da Inquisição, definitivamente estabilizado sob a responsabilidade da ordem mendicante dos Dominicanos e que se reintensificaria novamente a partir de fins do século XV, notadamente na Espanha. De igual maneira, ao nível dos estados que começam a consolidar seus mecanismos de centralização, tomam forma na Inglaterra os Estatutos dos trabalhadores e legislações similares na França e outros países, todas destinadas a controlar uma força de trabalho que começa a se insurgir contra condições desfavoráveis ou mesmo insuportáveis de trabalho.
É neste quadro convulsionado que florescem os fraticelli. Rígidos defensores da pobreza absoluta que julgavam preservar a verdadeira herança franciscana, eles costumavam viver em lugares isolados ou eremitérios, ao mesmo tempo em que continuavam a usar o hábito dos franciscanos e, como estes, a organizarem-se em províncias governadas por um geral. A bula Gloriosam Ecclesiam (1318), que condena os espirituais da Toscana refugiados na Sicília, menciona entre os erros da nova seita a ideia de que existiriam duas igrejas: uma espiritual (a igreja pobre dos fraticelli) e a outra carnal, identificada com a Igreja Romana.
Percebe-se aqui a incorporação, mesmo que vaga, de algo do pensamento dualista que lembra as heresias do século anterior. Expelidos do circuito eclesiástico da Santa Sé, os fraticelli começavam a se aproximar de propostas de outros movimentos heréticos e a negar a validade dos sacramentos, uma vez que estes estariam sendo administrados por sacerdotes ilegítimos, autorizados por uma hierarquia que eles não mais reconheciam. Por outro lado, alguns deles também passaram a compartilhar das ideias de Joaquim de Flora sobre o fim do mundo. Sua difusão, sobretudo na Itália, foi particularmente favorecida pelas circunstâncias da época: o exílio dos papas em Avignon e o cisma do Ocidente, a luta das comunas italianas contra a autoridade eclesiástica.
Combatidos e perseguidos pela Inquisição, os fraticelli terminariam por desaparecer por volta da metade do século XV.
7 A devotio moderna
As divisões internas ao franciscanismo dos últimos tempos medievais, algumas chegando a serem classificadas como heréticas, constituem apenas um primeiro exemplo da explosão de propostas questionadoras que começam a emergir do seio da Igreja. De fato, os séculos XIV e XV serão ricos em heresias e comportamentos heréticos, em cismas e ameaças de cisões internas no corpo eclesiástico, em insubordinações várias contra a autoridade papal.
Neste novo quadro de ameaças à unidade cristã, os dois principais movimentos dos séculos XIV e XV que a Santa Sé terminaria por conceber como heresias são o wycliffismo e o hussismo. Uma das análises mais ricas sobre este novo quadro de movimentos – devidamente associada ao contexto de um novo mundo que já não é mais o da expansão feudal, mas sim o de um universo superpovoado que breve teria nas grandes fomes e na Peste de 1348 os sintomas de uma verdadeira crise da Cristandade diante de suas próprias limitações espaciais e produtivas – foi elaborada por Pierre Chaunu em sua obra O tempo das reformas. Tal como observa Chaunu, o wycliffismo e o hussismo são dois movimentos indissociáveis da crise do Grande Cisma do Ocidente (CHAUNU, 1993: 206). Por outro lado, Chaunu ainda ressalta que existe um diálogo histórico a ser compreendido entre a questão da Reforma, os comportamentos cismáticos e as heresias da Baixa Idade Média. Isto porque, apesar da Reforma do século XVI não poder ser, em nenhum caso, assimilada às heresias dos primeiros séculos, apesar de não ser, em nenhum aspecto, uma heresia, já que se situa, como o catolicismo da Reforma Católica, numa perspectiva de continuidade, é importante salientar que, tanto num lado como no outro, é em termos tradicionais de heresia que o comportamento cismático foi interpretado.
Uma prefiguração que pode ser identificada entre as “heresias” de Wycliff ou Huss e a Reforma Protestante do século XVI está no fato de que elas se situam em outro plano de sensibilidades religiosas, particularmente aspirantes a uma piedade individual e a uma relação mais pessoal com Deus. Chaunu explica o ponto: “A Igreja é o instrumento coletivo de uma salvação coletiva e individual”. Ora, a crença na Igreja como instrumento de salvação coletiva vê-se abalada tanto pela ocorrência das grandes mortes provocadas pela Peste, da qual a Igreja não pôde proteger a coletividade, como pelo Grande Cisma, que evidencia a crise no topo da hierarquia eclesiástica. A parte de crença na Igreja como salvação coletiva vê-se abalada, e subsiste mais forte a crença na Igreja como salvação individual (CHAUNU, 1993: 215).
É ainda Chaunu quem propõe uma filiação singular. As heresias, propriamente ditas, corresponderiam ao filão herético que propunha transformações dogmáticas: as heresias da Antiguidade e o seu prolongamento em termos de transformações doutrinárias, que é o maniqueísmo medieval através dos cátaros. Já as proposições de Wycliff e John Huss corresponderiam ao outro filão, àquele que incluiria numa linha de associações Valdés, Wycliff, Huss, e finalmente Lutero e os demais reformadores do século XVI (CHAUNU, 1993: 216).
Por outro lado, antes de discutirmos o quadro geral dos movimentos liderados por Wycliff e Huss, será oportuno considerar um espaço de intertextualidade importante que o afeta: este grande conjunto de correntes que constituem aquilo que os humanistas dos finais dos séculos XV e XVI chamaram devotio moderna. Na Alemanha, já veremos um grupo diversificado que ampara suas propostas religiosas em uma leitura direta da escritura, e que entre 1393 e 1400 seriam atingidos por diversas sentenças papais. Mencionaremos os “irmãos do espírito livre”, e, sobretudo, os “begardos”. Estes e outros grupos heréticos, na verdade, dão continuidade ao pensamento místico que na década anterior havia sido introduzido por pensadores como Eckhart e Ruysbroek, mas conduzindo-os a um radicalismo bastante acentuado. Ruysbroek, contudo, condena os “irmãos do espírito livre” na segunda parte do seu Ornement des Noces Spirituelles (DELARUELLE, 915):