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Ao mesmo tempo, já ocorrera em 1381 a revolta popular liderada por John Ball, que se filiara à influência de Wycliff, e este “não pode romper a assimilação que se estabeleceu entre ele e os revoltosos” (CHAUNU, 1993: 232). Além disso, desde o final de 1380 surgira o movimento dos “padres pobres”, que se proclamam discípulos de Wycliff. Esta assimilação traz como implicação a retirada do apoio do Estado inglês, que até ali ancorara Wycliff, e este é expulso de Oxford. Há ainda outros movimentos que parecem dialogar com Wycliff, como o dos lolardos. O pensamento de Wycliff escapara ao controle dele mesmo. Já não lhe pertence. Mas lhe pertencerão suas consequências. É um caminho sem volta. Em 17 de maio de 1382, a doutrina de Wycliff é condenada por um comitê da Igreja inglesa. Em poucos meses é desconstruído o wycliffismo universitário, diante de uma frente que conta com a coroa, a autoridade da Igreja inglesa na pessoa do arcebispo de Cantuária, e as ordens mendicantes.

Em 1384, já doente, Wycliff morreria abandonado.

9 Derivações: os lolardos, os padres pobres, e João Huss

Pelo menos um setor bastante importante do movimento dos lolardos – heresia que preocupou a Igreja a partir de fins do século XIV e até meados do século XV – beneficiou-se bem diretamente da influência de Wycliff. As bases da influência wyclifiana sobre a heresia dos lolardos foi bem examinada por Anne Hudson em sua obra intitulada A reforma prematura: os textos de Wycliff e os Lolardos (1988). Grosso modo, existe de um lado um lolardismo universitário de forte inspiração wycliffiana que foi bastante atuante. Pierre Chaunu, em O tempo das reformas (originaclass="underline" 1975), também nos fala de um lolardismo parlamentar, hostil à fiscalidade pontifícia que tinha se estabelecido a partir dos tempos do papado de Avinhão, e também de um lolardismo popular (CHAUNU, 1993: 233).

Este último movimento tem inspirações similares ao que John Ball organizara a partir de um célebre jargão que dizia: “Quando Adão cavava e Eva fiava, onde estava o fidalgo?” Também já mencionamos os “padres pobres”, que uniam protestos à pregação do Evangelho, lembrando neste último aspecto e na sua combinação com o voto de pobreza a prática das ordens mendicantes. Depois de 1470, parecem desaparecer os últimos traços do wycliffismo, até que ele retorna sob a forma de uma influência importante com João Huss (1369-1415). Mas então já estaremos em outro período.

O contexto sob o qual se desenvolveram as primeiras formulações de Wycliff, em uma Inglaterra que não tivera problemas em reprimi-las a seu tempo, fora bem distinto do contexto de João Huss, que inicia o seu movimento na Boêmia, portanto no âmbito do Império. Enquanto o protesto wycliffista confundira-se na Inglaterra com um movimento limitado a um escalão social mais baixo, e portanto não representativo, o protesto hussita é marcado por um cunho nacionalista e desenvolve-se de maneira muito mais representativa, capitalizando a simpatia de amplos setores da população boêmia e correspondendo a “uma revolta de quase toda uma sociedade no âmbito territorial de um conjunto de estados” (CHAUNU, 1993: 234). Eis aqui, precisamente, a singularidade da Boêmia neste período: trata-se de um país que fora cristianizado tardiamente e no qual a Igreja traz os ambíguos traços de “arcaísmo e de evolução avançada” (CHAUNU, 1993: 234).

Sobretudo, o fato relevante é a combinação da peculiar situação política da Boêmia com a singular situação institucional de Igreja cristã da Boêmia. A Boêmia de João Huss é de um lado um dos diversos territórios que constituem o Império; e de outro uma região periférica do cristianismo, pois, tendo este atingido a região mais tardiamente, terminou por gerar uma Igreja local ainda periférica do ponto de vista institucional. De fato, tal como ressaltam Delaruelle e Labande em sua análise sobre A Igreja da época do Grande Cisma (1962-1964: 974), o ponto de partida da reforma na Boêmia está muito ligado à decisão do próprio imperador de estabelecer uma arquidiocese em Praga, como parte de uma estratégia com vistas a estabelecer um alinhamento e equiparação da periferia da Igreja boêmia com o centro institucional da Igreja em Roma, Paris e outras regiões centrais da Europa.

É da comunicação entre o Arcebispo Ernest de Pardubice e aspirações populares representadas por vários talentosos pregadores da Boêmia – como Mathias de Janow ou Conrad de Waldhayusem – que irá se gestar o ambiente do qual emergirá a obra de Huss, já embebida da influência wyclifiana. Vale lembrar ainda que a combinação entre os elementos modernos e arcaizantes manifestam-se no discurso de pregadores como Mathias de Janow, que remete ao estilo dos discursos mendicantes do século XIII, mas já adaptado à realidade da Igreja dividida pelo Grande Cisma. O discurso de Janow em suas Regras do Antigo e do Novo Testamento (1388-1396) é simples e direto, e atinge diretamente os meios populares da Boêmia. No clima do Grande Cisma, seu anticristo é obviamente o papa clementista, contrário ao circuito de alianças do Império. É em torno da pregação de Janow que surgirá uma espécie de devotio moderna da Boêmia, uma corrente que combina um espírito reformista, mais para o moderado, com algumas tonalidades místicas. A imagem wycliffiana de que acima da Igreja-instituição – a Igreja visível – existe uma Igreja invisível, a única verdadeira e que é comandada diretamente por Deus, torna-se uma de suas referências fundamentais.

John Huss – estudante da Universidade de Praga por volta de 1409 – começa a se projetar precisamente neste clima de ideias impregnadas de inspirações wycliffianas e de ambições políticas que vão desde as questões de identidade nacional até às aspirações da igreja local a uma situação menos periférica, tudo isto catalisado pelo explosivo clima do Grande Cisma, que chegará neste período à concomitância de três papas com o apoio imperial em 1409 a um papa de Pisa que dividirá ainda mais um universo religioso partilhado pelos clementistas (partidários de Bento XIII – 1394-1422 – sucessor de Clemente VII, papa de Avinhão que fora apoiado pela França e Península Ibérica) e urbanistas (partidários de Bonifácio XI e depois de Gregório XII – 1402-1415 –, um dos sucessores de Urbano VI, e que conta com o apoio da Inglaterra e da Itália Urbanista, embora não mais com o apoio do Imperador Vencelslau). O próprio ambiente da universidade tcheca – na sua oposição ao grupo clementista de Avinhão – está dividido entre apoios a Alexandre V (o papa de Pisa, que logo será sucedido por João XXIII) e ao Papa Bonifácio XI, ligado ao setor urbanista do Grande Cisma. Esta Universidade de Praga intensamente dividida logo irá ser abalada pela retirada, para a Universidade de Leipzig, dos universitários ligados às nações da Baviera, Saxônia e Polônia. E com isto se projetarão os universitários tchecos, entre os quais João Huss, que começa a se destacar pela sua atuação como pregador popular e pela sua imensa e significativa produção literária, esta que de certa forma poderá ser vista como um anúncio da corrente que iria mais tarde desembocar em Lutero, da mesma maneira que a obra de Wycliff pode ser vista como um prenúncio da corrente que iria se afirmar com Calvino. Ao mesmo tempo, as referências que John Huss privilegia nas escrituras – francamente tendentes às citações do Novo Testamento (ao contrário da corrente que desembocaria em Calvino, e que privilegia o Velho Testamento) – também anunciam a publicação da Imitação de Cristo, atribuída a Tomás de Kempis.