Na acepção mais restrita que empregamos acima, a ideologia estará sempre associada a um determinado sistema de valores. A ideologia, de acordo com este uso, tem a ver com “poder’’, com “controle social” exercido sobre os membros de uma sociedade, geralmente sem que estes tenham consciência disto e muitas vezes sem que os próprios agentes implicados na produção e difusão de imagens que alimentam o âmbito ideológico tenham eles mesmos uma consciência mais clara dos modos como o poder está sendo exercido.
Feitas estas considerações conceituais iniciais, nosso objetivo a seguir será o de examinar a polêmica discussão historiográfica que se tem estabelecido em torno de um dos sistemas ideológicos mais poderosos que recobriu as sociedades do Ocidente Medievaclass="underline" a trifuncionalidade social.
2 Trifuncionalidade na Idade Média e em outros contextos
Não é certamente uma criação exclusivamente medieval, ou de qualquer outro tempo, a tão discutida concepção de uma partição trifuncional do mundo social – um mundo que estaria grosso modo dividido entre aqueles que estabelecem a mediação da sociedade com os deuses ou com o mundo sobrenatural, aqueles que guerreiam para defender e impor esta mesma sociedade diante das outras, e por fim aqueles que trabalham arduamente para manter a base material de todo o conjunto social. Se na Idade Feudal um esquema similar a este pôde ser traduzido em termos de uma sociedade já cristianizada e dividida em oratores, bellatores e laboratores, a verdade é que encontraremos as mais diversas concepções tripartidas em sociedades antigas e nas mais variadas partes do mundo.
Em vista de um quadro tão complexo, há pouca possibilidade de que se chegue algum dia a um consenso entre os historiadores e estudiosos de outros campos das ciências humanas relativamente às origens primordiais desta ideia de uma sociedade tripartida. Estaria Dumézil (1958) correto ao afirmar que o esquema tripartido é uma representação tradicional dos povos indo-europeus? Teria alguma razão Boyancé (1955), ao desacreditar da afirmação dumeziliana de que tal esquema tenha estado também muito presente no espírito dos latinos? Ou tal esquema, como propõe Abravael Vasilji (1963), poderia simplesmente surgir em determinadas sociedades em certos momentos, sem que haja necessariamente uma rede de influências e infiltrações que justifiquem por contaminação a manifestação do pensamento trifuncional nesta ou naquela sociedade histórica? (DUMÉZIL, 1958; BOYANCÉ, 1955: 100-107; ABRAVAEV, 1963: 1.041-1.070).
Estas questões interessantes, mas por demais polêmicas, têm sido habilmente contornadas por historiadores como Jacques Le Goff (1965), Georges Duby (1978) ou Daniel Rouche (1979) em favor de outra, bem mais produtiva para os estudos medievais: que motivações sociais e políticas teriam permitido que o esquema tripartido fosse reapropriado de uma maneira tão específica pelos letrados dos primeiros tempos feudais, e que novas motivações teriam permitido que a ideia fosse reatualizada com tanto sucesso pelos séculos seguintes? (LE GOFF, 1980). Torna-se assim necessário, para além de investigar apenas as origens históricas e antropológicas das imagens de base que constituem a teoria da trifuncionalidade, ou mesmo de rastrear os seus princípios medievais em textos carolíngios e ainda mais explicitamente nas primeiras décadas do século XI, examinar sobretudo as causas de sua adoção mais generalizada pela Europa cristã no final do século XI, tal como propõe Daniel Rouche (1979).
Sobretudo, mostrou-se fundamental para os historiadores que examinaram mais sistematicamente a trifuncionalidade medieval verificar como esta imagem se difunde até que termina por penetrar, conforme bem o demonstrou Georges Duby em As três ordens ou o imaginário do feudalismo, em uma grande parte das estruturas intelectuais e interinstitucionais da sociedade ocidental nos séculos XI e XII.
Adicionalmente, seria mesmo o caso de verificar a força de tal imagem em períodos posteriores à própria Idade Média, tal como se propôs Duby ao examinar a presença da trifuncionalidade nos textos do teórico político Loyseau, já em pleno século XVII, naturalmente que já sob um novo contexto gerador de novos significados (DUBY, 1982: 13-17). Mas aqui já nos afastamos do nosso tema, que é a relação da trifuncionalidade com a sociedade que se constitui no Ocidente Europeu pela altura da Idade Média Central.
De qualquer modo, para utilizar as próprias palavras de Le Goff, seria precisamente o caso de perceber que, se o tema da trifuncionalidade, até então ausente da literatura cristã, reaparece entre os séculos IX e X, é porque corresponde a uma nova necessidade (LE GOFF, 1980: 76). Mais ainda, conforme veremos mais adiante a partir das próprias colocações de Le Goff, esta imagem conceitual da sociedade teria correspondido não apenas a uma forma de expressão da nova sociedade que se consolidava, mas também a um projeto de agir sobre esta mesma sociedade. Teria se constituído mesmo, Le Goff ousa dizer, em um singular “instrumento de propaganda” (LE GOFF, 1980: 76).
Antes de chegarmos a esta problematização, consideraremos inicialmente algumas das pesquisas sobre o assunto desenvolvidas por Georges Duby, que se empenharam mais especificamente em rastrear com maior precisão alguns elementos, por vezes dispersos, que posteriormente se combinariam em favor da constituição efetiva de uma “teoria da trifuncionalidade” nos já célebres textos de Adalberón de Laon e de Gerard de Cambrai no século XI.
3 As origens
A preocupação inicial de Georges Duby no mais famoso de seus textos sobre a trifuncionalidade – o clássico As três ordens ou o imaginário do feudalismo (1978) – liga-se à necessidade de identificar com maior precisão os começos medievais deste pensamento trifuncional que seria tão importante para o desenvolvimento do feudalismo. Dois textos medievais escritos por volta de 1030 – muito claros a respeito desta concepção trifuncional que divide o mundo em oratores, bellatores e laboratores – parecem de certo modo “partir do silêncio” através das vozes contemporâneas de Adalberón de Laon e Gerardo de Cambrai, dois bispos da França do Norte na primeira metade do século XI (DUBY, 1982: 19). Os começos de uma teoria da trifuncionalidade poderiam ser situados aí, conforme sustenta o historiador francês, o que atesta a importância destes famosos textos que desde tempos mais recuados até tempos mais recentes têm merecido importantes estudos da parte de alguns dos melhores medievalistas (SCHIEFFER, 1937; COOLIDGE, 1965). O texto de Adalberón, para além de sua publicação no Monumenta Germânica Histórica, mereceu ainda uma tradução importante para o francês, acompanhada de uma importante tese explicativa (CAROZZI, 1973).