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O fato de que a formulação mais precisa da trifuncionalidade medieval surja a partir destes dois textos fundadores não significa, naturalmente, que não apareça em períodos anteriores a ideia de separar mais nitidamente o âmbito religioso do âmbito temporal, ou de delimitar no interior do mundo laico uma oposição entre guerreiros e trabalhadores, ou mesmo de relacionar em um todo mais equilibrado que corresponderia à Cristandade os diversos papéis sociais. Na verdade, estas ideias aparecem dispersas em várias fontes bem anteriores aos textos produzidos pelos bispos da primeira metade do século XI, e cabe ao historiador mergulhar em uma busca problematizada que recua para além das origens das formulações mais precisas da trifuncionalidade.

De acordo com as observações de Georges Duby em um ensaio anterior ao seu livro sobre As três ordens ou o imaginário do feudalismo, seria possível identificar indícios de que o pensamento social e político, que em breve conduziria à célebre teoria das três ordens, teria partido inicialmente de uma divisão mais simples, inscrita no quadro de oposições e interações binárias entre o mundo temporal e o religioso (DUBY, 1989b: 31). Assim, é conhecida, por exemplo, uma “carta do Papa Zacarias a Pepino, rei dos francos” – datada de 747 – que já menciona uma clara oposição entre as duas ordens, “os guerreiros e os que oram”[24]. De igual maneira, Agobard – em texto datado de 833 – já explicita ainda mais claramente uma oposição entre as duas ordens: militar e eclesiástica – isto é, entre a saecularis militia e o sacrum ministerium.

Avançando nas pesquisas desenvolvidas por Georges Duby, a Vida de São Geraldo de Aurillac, escrita em 930 pelo abade Odon de Cluny, já mostraria ainda mais sintomaticamente a maturação de uma teoria que busca ordenar os poderes secular e temporal. É de fato a primeira Vita cujo herói é um leigo, representante autêntico da nobilitas (e não um rei nem um prelado). Intenciona mostrar que um nobre pode chegar à santidade sem depor as armas, tornando-se um miles Christi – e com isto almeja conferir à atividade militar, enquanto função específica da nobreza guerreira, um valor espiritual. O personagem São Geraldo de Aurillac teria conseguido unir o exercício do poder à prática da humildade e à preocupação com os pobres. O texto também se mostra como pretexto para uma delimitação das missões do homem armado. Será igualmente útil observar que Odon, como mais tarde também ocorreria com Adalberón de Laon ou Gerard de Cambrai, ainda não utiliza a palavra miles para designar o grupo de especialistas de combate (bellatore) como será tão comum a partir do século XI[25].

Mas, por fim, começam a certa altura a aparecer os textos que não deixam de prenunciar de algum modo uma teoria da trifuncionalidade.

Os Miracles de Saint Bertin, texto hagiográfico escrito no final do século IX, nos mostram uma divisão tríplice, separando dos oratores e bellatores o “imbelle vuilgus[26].

Estes casos isolados, elementos importantes de uma intertextualidade que deve ser considerada, não alteram contudo o fato de que os textos fundadores – aqueles que os historiadores verificam já explicitarem muito claramente o que poderia ser considerado uma “teoria da trifuncionalidade” – aparecem sintomaticamente depois do ano 1000, precisamente quando começa a se implantar uma sociedade feudal propriamente dita. É assim que, em 1030, dois dos bispos mais influentes da França do Norte – Gerard de Cambrai e Adalberón de Laon – propõem muito claramente o esquema da trifuncionalidade [Gerard de Cambrai: Oratores, agricultores, pugnatores; Adalberón de Laon: Orare, pugnare, laborare].

Neste ponto, depois de termos acompanhado as pesquisas de Georges Duby visando destacar, de maneira bastante sumária, os discursos que contribuem de alguma maneira para o estabelecimento da ideia de uma partição funcional da sociedade – a princípio uma partição dicotomizada entre os poderes temporal e religioso, e depois uma partição nitidamente trifuncional – será oportuno retomarmos a problematização proposta por Jacques Le Goff. Para o historiador francês, conforme veremos, a difusão da trifuncionalidade relaciona-se claramente com os progressos da ideologia monárquica e com a formação das monarquias nacionais na sociedade carolíngia (LE GOFF, 1980: 76). Desta maneira, a reapropriação medieval da trifuncionalidade corresponderia não apenas a um fenômeno feudal, mas também a um fenômeno associado aos desenvolvimentos das monarquias feudais.

4 A trifuncionalidade e o poder régio

Não é por acaso que Jacques Le Goff, embora também remontando ao século IX, irá buscar em um outro tipo de fontes os começos da trifuncionalidade. Tanto em seu artigo mais antigo intitulado Notas sobre a sociedade tripartida (1965), como no capítulo “O rei das três funções” incluído na biografia sobre São Luís (1994), um texto que havia passado desapercebido pelos historiadores chama-lhe atenção (LE GOFF, 1980: 75-84; LE GOFF, 2002: 568-596).

Começa então destacando um acréscimo introduzido, em fins do século IX, na tradução anglo-saxônica da obra De Consolatione Philosophia de Boécio (SEDGEFIELD, 1899- 1900). O acréscimo, determinado pelo Rei Alfredo o Grande, explicita a ideia de que as três ordens são como que utensílios e materiais necessários à realização da obra monárquica e ao exercício do poder com eficácia (LE GOFF, 1980: 76).

O segundo texto discutido por Le Goff é datado de 995, portanto anterior ao famoso texto Carmen ad Robertum do Bispo Adalberón de Laon, que possivelmente foi escrito entre 1025 e 1027. O Monge Abbon de Fleury, em um texto cujo título resumiremos por Apologeticus adversus […], descreve a sociedade como constituída por duas categorias principais, os clérigos e os laicos, sendo que estes últimos se subdividem em agricultores – agricolae – e guerreiros, ou agonistae. Os dois textos, como observa Le Goff, embora se relacionem também a interesses eclesiásticos, são levados na sua busca de apoio real a fortificar a instituição monárquica. É interessante acrescentar que Abbon de Fleury, tal como mostram os estudos de Roger Bonnaud-Delamare (1951), foi também o responsável pelas condenações pronunciadas na época do primeiro Concílio de Charroux contra “os clérigos excessivamente apegados ao dinheiro ou que combatiam como leigos” (BONNAUD-DELAMARE , 1951: 422). Isso reforça o terreno de separação interfuncional em que ele se movimenta.

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24

Fonte 1: ZACARIAS., 3. MGH,, I, p. 480. • Fonte 2: AGOBARD, MGH,, p. 191-192, apud DUBY, 1989b: 31.

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25

Odon de Cluny., apud DUBY, 1989b: 35.

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26

, apud DUBY, 1989b: 31.