Por outro lado, seria oportuno lembrar através de outro trecho do Apologeticus adversus, Abbon expressa em outra oportunidade um segundo esquema tripartido que poderíamos denominar “teoria dos três graus”.
Tal como enuncia Abbon de Fleury, “entre os cristãos dos dois sexos, sabemos bem que existem três ordens e, por assim dizer, três graus: o primeiro é o dos leigos, o segundo o dos clérigos, e o terceiro o dos monges. Embora nenhum dos três seja isento de pecado, o primeiro é bom, o segundo melhor, o terceiro excelente”. Conforme veremos mais adiante, a sutileza do esquema tripartido funcional é que ele substitui esta concepção trinitária anterior, aproximando em uma única ordem os modos de vida de “clérigos” e “monges”, e criando uma cisão do mundo laico de acordo com o seu modo de vida dedicado à guerra ou ao trabalho.
Neste momento, contudo, através das oscilações presentes no texto de Abbon de Fleury, percebemos a silenciosa guerra de representações que se trava no discurso eclesiástico.
O terceiro exemplo trazido por Le Goff remete à Polônia do século XII, e é a Cronica et Gesta Ducum Sive Principum Polonorum (1113-1116), de um cronista que ficou conhecido como Gallus Anonymus. Ao dividir a população laica, a fonte fala nos milites bellicosi e nos rustici laboriosi. O texto constrói-se na verdade em apoio ao círculo real de Boleslaw Boca Torta, e é empregado por Le Goff para trazer um elemento de contraste no tempo e no espaço. Segundo suas conclusões, os três textos mostram que, em fins do século IX e princípio do século XII, de um extremo ao outro da comunidade latina, o esquema tripartido está relacionado aos esforços de certos meios laicos e eclesiásticos para consolidar ideologicamente a formação de monarquias nacionais (LE GOFF, 1980: 79).
A definição de cada uma das três ordens no conjunto de textos coloca para Jacques Le Goff questões bastante interessantes. A ordem clerical, tendo por função principal a oração, expressa na verdade a capacidade de assegurar para a comunidade, através do exercício profissional da oração, o auxílio divino. A ordem dos bellatores, que tenderá a partir do século XII a ser expressa com o termo milites, é especializada na luta. Ressalta-se que a consolidação da ordem dos bellatores entre os séculos IX e XIII corresponde ao aparecimento de uma nova nobreza e à preponderância da função guerreira nesta nova aristocracia (LE GOFF, 1980: 79). Mais problemas são colocados pela ordem dos laboratores. Quem seriam?, pergunta Le Goff. Os textos falam nos agricolae, nos rustici. Por outro lado, no seu sentido mais abrangente o termo laboratore referir-se-ia a todo o restante da sociedade – excetuando-se o clero, os bellatores. Neste sentido estendido, aliás, seria oportuno lembrar uma acepção que frequentemente aparece em algumas capitulares carolíngias, onde labor é definido por oposição ao “patrimônio herdado”.
Niermeyer, em um artigo publicado na revista Moyen Age intitulado “A marge du noveau Ducange” (1957), mostra exemplos tanto de labor sendo empregado na acepção de “trabalho agrícola”, como na acepção que está registrada na Capitular De partibus Saxoniae (785), onde designa “o fruto de toda atividade aquisitiva oposta ao patrimônio herdado” (NIERMEYER, 1957).
Há por fim uma acepção, também discutida por Jacques Le Goff, em que a ordem laboratore referir-se-ia não a todos os agricultores, mas somente a uma elite dentro do próprio conjunto de camponeses – e neste caso o esquema trifuncional estaria se referindo apenas aos melhores da Cristandade: os ordos oratore e bellatore e a parte dos camponeses dignificada pelo seu trabalho e condição social mais elevada do que a dos trabalhadores agrícolas para baixo de um determinado nível de dependência. Aqui, o esquema tripartido não abrangeria, portanto, toda a sociedade, mas apenas os grupos sociais dignificados, por oposição a toda uma imensa gama de categorias que ficaria de fora.
A posição do rei no esquema tripartido é bastante singular. Rei dos oratores, ele não deixa de participar ao seu modo da natureza e dos privilégios eclesiásticos e religiosos. Rei dos bellatores, ele é o primeiro dos guerreiros, e nesta função concretiza certas ambivalências que dele fazem tanto um rei feudal – um primus inter pares que se apresenta como a “cabeça” da aristocracia militar – como também alguém que é colocado fora e acima dela. Uma avaliação mais completa do esquema poderia ainda situá-lo como o ponto de confluência das três ordens, e o aspecto de “rei dos laboratores” apresenta-se como a função régia de garantir a ordem econômica e assegurar a prosperidade material (LE GOFF, 1980: 80).
A imagem do rei como aquele que participa simultaneamente das três ordens ajuda a compreender, particularmente, que a função do esquema tripartido seria representar a harmonia, a “interdependência”, a solidariedade entre as ordens. E explica também, conforme propõe Le Goff, o sucesso crescente que apresentaria a imagem do “rei” – árbitro que harmoniza todas as ordens – em relação à imagem de “imperador”, condenada por uma dualidade “império” versus “papado” que se fundava na irrealizável distinção entre espiritual e temporal (LE GOFF, 1980: 83).
O modelo do rei trifuncional também permite compreender governantes concretos da Idade Média, ou pelo menos as suas idealizações, e foi esse um dos objetivos de Jacques Le Goff ao dedicar-se a escrever um capítulo sobre a trifuncionalidade régia em sua biografia sobre São Luís (1996). Através deste rei modelar, Le Goff permite-se captar precisamente a singularidade da trifuncionalidade medieval, notando que, ao contrário do que ocorrera na Índia Antiga e na Roma das origens, os reis medievais não apareciam habitualmente, à maneira dos deuses, caracterizados por uma ou outra das três funções – rei essencialmente legislador ou guerreiro, ou então fiador da prosperidade – mas sim um rei que reúne todas as funções em si (LE GOFF, 2002: 369). Mesmo que permanecendo em muitos casos como um horizonte imaginário ou idealizado, era este o modelo – um modelo que podia ser encontrado, por exemplo, nos Espelhos de príncipes do período.
5 A trifuncionalidade e os movimentos religiosos de seu tempo
A contribuição de Le Goff mostra-se particularmente importante no que concerne aos relacionamentos e interações da teoria da trifuncionalidade com a ideologia régia e os desenvolvimentos monárquicos, além das implicações econômicas que também são aventadas pelo historiador francês. Por outro lado, as análises de Georges Duby adquirem uma importância significativa em outras direções: ele examina a posição da teoria da trifuncionalidade no interior de um grande movimento produzido pela combinação das necessidades institucionais da Igreja com as necessidades religiosas do período de expansão feudal.