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A “trifuncionalidade” é uma peça decisiva para esse grande movimento que apresenta como manifestação importante, na primeira metade do século XI, as campanhas conciliares da “Paz de Deus”, e que irá culminar com a Reforma Gregoriana e com as Cruzadas no século XII. Neste contexto, tanto a “Paz de Deus” como a teoria da trifuncionalidade, constituirão aspectos importantes para a renovação da noção de “laicato”, a partir de proposições geradas no seio da própria Igreja[27]. Uma excelente síntese destas relações está registrada no ensaio “Os leigos e a paz de Deus”, escrito por Duby em 1966 e depois incorporado ao conjunto de ensaios publicado sob o título de A sociedade cavaleiresca (1979) (DUBY, 1989b: 80).

Visto desta perspectiva, a solução de Duby para compreender o essencial da trifuncionalidade difere das proposições de Le Goff, embora os dois posicionamentos não sejam propriamente antagônicos e possam mesmo serem trabalhados complementarmente. Enquanto Jacques Le Goff enfatiza a reapropriação da teoria da trifuncionalidade pela ideologia monárquica, Georges Duby a examina como parte integrada de um sistema ideológico produzido pela própria Igreja em apoio ao seu projeto universal de conduzir os rumos da Cristandade e, sobretudo, de se pôr a salvo dos confrontos com os poderes temporais e de eventuais violências produzidas pela fragmentação dos poderes feudais nas mãos dos cavaleiros. O cenário da consolidação do imaginário trifuncional é, portanto, um mundo vazado transversalmente por conflitos e comoções de toda ordem, como nos mostra o historiador R. Fossier (1973: 45-50).

É das Histórias de Raul Glaber – fontes que foram atentamente examinadas por Georges Duby em sua obra sobre O ano mil (DUBY, 1992) – e particularmente das suas descrições do movimento da Paz de Deus no princípio do século XI, que Duby parte para mostrar que mesmo os contemporâneos da teoria trifuncional puderam perceber todo este movimento que se inicia com a Paz de Deus como um esforço inicial dos altos dignitários de Igreja para “subtrair esta às pressões do temporal, para situá-la, deste modo, em posição dominante e torná-la capaz de uma missão que um dia pertencera à realeza”, ao menos no período de centralismo carolíngio: conduzir os destinos do povo cristão (DUBY, 1989a: 80).

Reinserida neste processo, a trifuncionalidade irá ser vista como parte de um movimento que decorre dos desafios da Igreja diante da necessidade de enfrentar a decomposição das instituições públicas carolíngias, mesmo que em momento posterior – como veio a propor Le Goff – a teoria da trifuncionalidade possa ter atendido também aos propósitos de gradual centralização em torno da figura do rei. Na análise que Duby desenvolve para integrar a trifuncionalidade em um movimento mais amplo que inclui outros fatores importantes – como a Paz de Deus ou a Reforma Gregoriana – parte-se da constatação de que o poder temporal estava, nos anos 990, nas mãos dos poderes locais. Estes exerciam prerrogativas de comando que outrora lhes foram delegadas pelo soberano carolíngio, e que agora eles detinham por direito hereditário.

Julgar e punir neste contexto era uma oportunidade para os senhores laicos arrecadarem da população taxas bastante lucrativas, as consuetudines.

Por outro lado, a Igreja possuía imunidades que lhe haviam sido concedidas pelos soberanos carolíngios, mas como o enfraquecimento da autoridade real praticamente tornara sem efeitos os diplomas de imunidade, agora os senhores laicos começavam a sujeitar cada vez mais a Igreja aos seus poderes. Na Gália Meridional, inclusive, os condes detinham o direito de nomear para as mais altas dignidades eclesiásticas, além de dispor das sedes episcopais e das funções abaciais (DUBY, 1989a: 39).

O programa eclesiástico que iria se seguir – e que termina por abarcar a teoria da trifuncionalidade como um de seus itens – representará precisamente o desejo de uma parte da Igreja em resistir aos poderes temporais. Um dos seus mais fortes pontos de apoio será o clero não comprometido com as práticas simoníacas, isto é, que não poderia ter qualquer interesse na sujeição da Igreja pelos poderes temporais locais.

Neste sentido, despontará o papel de Cluny. Compreende-se também por que uma questão vital, para este complexo processo de afirmação da Igreja perante os poderes temporais, estará na chamada Reforma Gregoriana, que começará a ser realizada de forma mais intensa entre 1150 e 1226. Um dos itens programáticos mais importantes desta reforma estará precisamente na libertação da Igreja em relação às interferências temporais, o que inclui desde a perseguição às práticas simoníacas (compra e venda de cargos eclesiásticos) até o estabelecimento do direito exclusivo da Igreja nomear suas próprias autoridades. Para além disto, a exigência de celibato aos padres da Igreja, outro ponto prioritário da Reforma Gregoriana, constitui mais uma maneira de afastar o clero das relações seculares, para além de salvaguardar a Igreja de dispersões patrimoniais.

Os lances de oposição entre Igreja e papado, por fim, também acompanham este mesmo processo.

6 A trifuncionalidade diante das mudanças de comportamento

Todos os aspectos acima destacados, pode-se sustentar sem maiores dificuldades, constituem parte de um único movimento cuja expressão institucional mais imediata é a Reforma Gregoriana, esta enfrentando passo a passo as questões da época que poderiam afetar a consolidação da Igreja como única instituição que, do ponto de vista da cúria papal, deveria estar habilitada a conduzir os destinos da Cristandade. Os grandes lances desta reforma papal e institucional aparecem como um jogo de xadrez habilmente disputado: da luta papal contra o tráfico das dignidades eclesiásticas e contra o concubinato dos padres locais, passa-se com Humbert de Moyenmoutier ao “questionamento das investiduras”, até se chegar à libertas de Gregório VII, que estabelecia ao mesmo tempo a independência em relação ao imperador e o direito exclusivo de julgar a sociedade cristã (VAUCHEZ , 1995: 58).

Obviamente que nem todas as motivações que movem este complexo xadrez devem ser buscadas no cálculo cuidadoso e nas estratégias político-institucionais que foram habilmente conduzidas pelos papas e através do apoio das lideranças de Cluny, estas que constituíram em algumas oportunidades um braço importante e vigoroso das medidas reformistas. Em vista disto, historiadores mais especificamente interessados na história das sensibilidades – e mais em uma história religiosa do que em uma história da Igreja propriamente dita – chamam atenção para o fato de que fatores ligados ao plano das sensibilidades e das mudanças nos comportamentos religiosos também devem aqui ser considerados. Conforme demonstram pesquisas realizadas por medievalistas como André Vauchez, é digno de nota que, por volta do ano 1000, no momento em que se prepara simultaneamente o clima reformista e surgem as primeiras formulações trifuncionais, o advento do milênio e a perspectiva do final dos tempos também fariam surgir em muitos espíritos o “desejo de apresentar a Deus uma Igreja sem mácula” (VAUCHEZ , 1995: 57). Separar a Igreja do século mais claramente, colocá-la a salvo das relações mundanas que podiam corrompê-la, salvaguardar a sua independência em um mundo que aguardava o fim dos tempos, não deixa de constituir um dos contrapontos mentais que devem ser considerados para a compreensão deste ambiente que gera simultaneamente os primeiros esboços da teoria da funcionalidade e uma vigorosa reforma monástica encabeçada por Cluny. Desta maneira, André Vauchez (1994) sustenta a ideia de que, para compreender esta luta que se trava no interior da Igreja e no seu em torno, é preciso situá-la também em uma perspectiva escatológica. Assim, se combater o concubinato dos padres logo seria uma questão fundamental para reformadores gregorianos que se preocupavam com a dispersão patrimonial através de heranças, desde o século X, na Abadia de Cluny, procura-se desenvolver uma espiritualidade eucarística baseada em um novo modelo de pureza para se aproximar. É em vista disto que Odon de Cluny, no seu poema Occupatio, fizera da castidade uma necessidade absoluta para aqueles que pretendessem se dedicar à vida monástica, afirmando-se aqui uma incompatibilidade efetiva entre o concubinato e a função sacerdotal.

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Sobre esta questão, cf. DUBY, 1976.