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Por ora, vale lembrar ainda que mesmo a leitura do “assassinato do Império Romano” permite-se a examinar este que seria o fatídico momento ou o processo do “assassinato”, se assim podemos dizer, de modo bem mais complexo, e neste caso o acontecimento das “invasões bárbaras” pode ser lido não necessariamente como um saque em destaque ou uma invasão específica, mas sim como todo um conjunto de acontecimentos relacionados às invasões ou migrações germânicas. Neste sentido, fariam parte de um mesmo “acontecimento-pacote”, entre outros itens, os confrontos que se dão entre povos germânicos e romanos a partir do século III d.C., bem como eventos mais específicos, como o fato de que os godos já tinham aniquilado legiões romanas em Adrianópolis em 378 d.C., os saques visigodo de 410 d.C. e vândalo de 455 d.C., fechando-se o pacote, finalmente, com a deposição de Rômulo Augusto em 476 d.C. Estes, naturalmente, são apenas alguns exemplos, e o “acontecimento-pacote” ao qual nos referimos engloba certamente muito mais eventos, alguns que possivelmente sequer passaram à história registrada, mas que devem ter trazido a sua contribuição atomizada para o resultado geral que em um tempo relativamente curto mudou a face da história do mundo antigo[3].

Uma segunda leitura: declínio do Império Romano

Consideradas as simplificações e complexidades possíveis a esta primeira leitura, consideraremos agora que, em radical oposição à tese de que a civilização romana é destruída pelas invasões ou migrações dos povos germânicos, teremos os historiadores que defendem a ideia do “declínio do Império Romano”. Opondo-se à frase de Piganiol de que “o Império Romano foi assassinado”, Lot (1985) – um dos defensores da hipótese do declínio – propõe a frase de que “o Império Romano morreu de morte natural”[4]. Aqui, além da ideia do acontecimento que produz o corte ou a ruptura definitiva, teremos a ideia do processo que conduz à “decrepitude” de toda uma civilização. O acontecimento-ruptura é aqui, ainda mais necessariamente, substituído pelo acontecimento-processo.

De qualquer forma, em um caso ou outro, ainda teremos a ideia de algo que “termina”, e não de algo que se “transforma”. Na análise de Lot, as crises sociais, econômicas e políticas do século III teriam gerado uma nova resposta política assinalada por um estado interventor, corrupto e burocratizado que substitui a antiga autoridade senatorial. A esta crise, da qual o Império Romano jamais teria se recuperado, também se somaria o novo tipo de organização militar onde os povos germânicos incorporados ao Império desempenhariam um papel cada vez mais destacado, por vezes à maneira de mercenários. Estes e outros processos são mostrados como os sintomas de um declínio[5]. O que é significativo, de qualquer modo, é que também nesta leitura o Mundo Romano e o Mundo Medieval são mostrados um tanto como planetas estanques: um começa onde o outro já se foi, e são bastante minimizadas as interpenetrações entre estes dois mundos.

Podemos indagar sobre o que nos revela, acerca das concepções historiográficas que a sustenta, a dicotomia que permeia a ideia de que o Império Romano morre como um grande Ser, ora assassinado, ora definhando como um velho moribundo que ao final de sua vida vê esvair-se gradualmente a sua energia vital enquanto se desbotam os principais traços que lhe compunham a identidade. A ideia de um “acontecimento-ruptura” que teria presidido a morte do Império através da violência dos povos germânicos se adapta, por exemplo, a uma historiografia que tem importantes desenvolvimentos no século XIX, e que anseia delimitar com precisão o “acontecimento”, situando-o por vezes em uma data bem-definida, e de qualquer modo sempre enfatizando o acontecimento político – “político” no sentido antigo, do macropoder que se estabelece ao nível dos grandes estados, instituições e confrontos militares. Ao mesmo tempo, na outra ponta da dicotomia, a ideia de “queda” ou de “declínio” ampara-se em muitos casos, embora por um caminho distinto, nesta mesma velha história política que se orienta tendo como perspectiva central a ser analisada a capacidade de uma civilização manter ou não uma unidade imperial mais ampla. Perder a unidade política, deste ponto de vista, é morrer, envelhecer, decair em vigor. É aliás oportuno lembrar as considerações do historiador francês Jacques Le Goff sobre as apropriações historiográficas do conceito de “decadência” – um conceito que acrescenta um tom ainda mais depreciativo à ideia de “declínio” – e que também pode eventualmente ser direcionado para questões meramente políticas relacionáveis à desintegração da estrutura política (LE GOFF, 1984: 416).

Vale lembrar que o conceito de “decadência” foi colocado também em pauta pelas próprias gerações de pensadores que vivenciaram e se seguiram à desarticulação do Império Romano em favor das novas unidades políticas e territoriais que introduzem o período medieval. É assim que, em um célebre estudo sobre O fim do Mundo Antigo que é também já um clássico, Santo Mazzarino (1916-1987) busca historiar precisamente as trajetórias da ideia de decadência na produção literária e na cultura latina como um todo, reinserindo-a no confronto ideológico entre cristianismo e paganismo que eclode na época e se estende também por períodos posteriores. A ideia de decadência – e essa é uma chave importante para a compreensão do uso do conceito pelos próprios autores da época – implica sempre uma comparação do período que se considera como “decaído” ou “decadente” em relação a um período anterior, necessariamente visto como melhor. Assim, na ideia de decadência está sempre explícita, de algum modo, uma exaltação ao passado. A consideração acerca de qual seria o elemento que produz ou produziu a decadência, obviamente, transmuta-se conforme a perspectiva do analista, que na época dificilmente escaparia de um posicionamento em relação à questão da dicotomia entre paganismo (ou humanismo clássico) e cristianismo.

Neste sentido, vale lembrar que já remonta aos próprios tempos antigos a diversidade de leituras estabelecidas em torno dos marcos históricos que foram pressentidos pelos próprios antigos como sinais do fim de todo um período. Assim, enquanto alguns autores pagãos, particularmente tomados por uma visão pessimista, tenderam a encarar o saque de 410 sob a perspectiva de um acontecimento que sinaliza uma decadência que havia fragilizado o Império e possibilitado o saque de Alarico, já será outra a visão de Paolo Orósio (c. 385- c. 420) – autor da primeira história universal escrita por um cristão e entretecedor de uma avaliação dos acontecimentos históricos onde cada aspecto ou acontecimento é medido em função da sua aproximação ou afastamento em relação ao cristianismo. Para Orósio, o saque visigodo do ano de 410 é positivado simultaneamente como demonstração do “juízo de Deus” e como anúncio de uma nova era que estaria por vir, acrescentando-se ainda a ênfase em uma leitura sobre Alarico como visigodo convertido que desfecha um golpe fatal sobre a Roma pagã (ORÓSIO, 1986)[6]. Este tipo de leitura divinizante da história, aliás, onde cada acontecimento (seja este um sucesso ou uma catástrofe) fala diretamente de Deus e de uma relação dos atores humanos com Ele, que pode no caso ser punida ou premiada, seria prontamente incorporada na Idade Média.

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3

Deve-se ressaltar que essa percepção, do impacto dos povos extrarromânicos como um grande processo, é antiga. Nas considerações sobre as causas da grandeza dos romanos, escritas por Montesquieu em 1747, já iremos encontrar a seguinte passagem: “Não foi uma determinada invasão que destruiu o Império, mas todas as invasões. Depois da que foi muito generalizada no Reino de Galo, ele pareceu restabelecer-se, pois não havia perdido terreno. Entretanto, paulatinamente, deslizou da decadência para a queda, até ser subitamente prostrado no reinado de Arcádio e de Honório” (MONTESQUIEU, 2002: 158). É interessante já identificar a presença do contraste entre os conceitos de “decadência” e “queda” em Montesquieu, em um texto que precede a célebre análise de Gibbon algumas décadas depois. Merece destaque também a percepção do processo como sujeito a pequenas idas e vindas, apesar do paulatino caminho para o inevitável colapso.

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4

Além de Lot, outro autor que acompanha esta linha interpretativa é A.H. Jones, com seu livro intitulado(1970).

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5

Sintetizaremos um conjunto de fatores que podem ser pontuados como desdobramentos importantes da crise do século III: • Empobrecimento da população gerando confrontos sociais. • Desmonetarização e crescimento da economia natural. • Centralização do poder imperial, em detrimento da antiga autoridade senatorial. • Petrificação da sociedade em segmentos bem definidos. • Burocratização e militarização do poder. • Intensificação de exigências fiscais. • Penetrações dos povos “bárbaros”. • Desenvolvimento de um novo sentimento religioso. Sobre a crise do século III e seus efeitos, cf. Fernández Urbina (1982).

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6

Para uma análise bibliográfica crítica sobre Orósio, cf. Vilella (2000: 94-121).