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Apartar-se do mundo – o caminho do monge – era portanto uma via segura para a salvação. Por outro lado, em outros setores da Igreja, e na medida em que nos afastamos das expectativas mais radicalmente escatológicas do início do milênio, “a espera inquieta da catástrofe última daria lugar ao desejo de construir hic et nunc o Reino de Deus”. É assim que, não só entre os reformadores gregorianos como também em certos setores da religiosidade mesmo laica, uma nova alternativa seria proposta ao nível da escatologia. Para retomar as palavras do historiador André Vauchez, começa a se consolidar este desejo de “agir diretamente sobre o mundo para torná-lo de acordo com a vontade divina” (VAUCHEZ , 1995: 58).

Esta nova perspectiva permitirá recolocar a questão das relações entre a teoria da trifuncionalidade e a reforma religiosa em toda a sua complexidade. Embora fosse quase consensual entre os clérigos e monges ligados à orientação papal que urgia delimitar muito claramente o espaço religioso do espaço temporal, de um lado se afirmaria uma corrente que logo levaria a Igreja a intervir cada vez com maior frequência nos assuntos seculares. De outro lado, eclesiásticos como o bispo Gerard de Cambrai – um dos dois primeiros formuladores do esquema trifuncional – eram de opinião que os religiosos afastavam-se do papel que Deus lhes havia destinado quando se ocupavam de questões temporais. Em vista disso, diante do movimento que ficaria conhecido como “Paz de Deus” – e que de certo modo buscava substituir uma autoridade real em decadência visando organizar o mundo social – Gerard de Cambrai sustentaria que cabia aos governantes temporais e não à Igreja garantir a ordem pública.

Isso nos mostra um dado importante a ser considerado. A teoria da funcionalidade surge no âmbito de uma Igreja que clama por uma delimitação bem nítida entre a esfera religiosa e o mundo laico, e que logo se aperfeiçoa no sentido de prever uma separação igualmente nítida entre as funções bellatore e laboratore. Mas quanto ao tipo de relação que esta Igreja – definida como um corpo em separado – deveria estabelecer com referência às duas demais ordens pertencentes ao mundo laico, aí se abriam duas alternativas: o isolamento e a ação no mundo. A trifuncionalidade permitia, assim, muitas leituras, e isto não passou desapercebido aos seus contemporâneos e aos seus idealizadores. Com relação à “Paz de Deus”, um movimento surgido na Igreja e que se propunha a agir sobre o mundo, Adalberón de Laon e Gerardo de Cambrai representam posições diametralmente opostas, embora ambos estejam na raiz da primeira explicitação de uma teoria da trifuncionalidade medieval.

A Paz de Deus ainda nos leva a refletir sobre as posições extremamente ambíguas da Igreja em relação à aristocracia guerreira e à sua função bellatore. Os miles podiam ser, em relação à Igreja, desde ameaças até aliados. Por outro lado, é extremamente sintomático que tenha sido por ocasião de uma assembleia da paz, realizada em Clermont em 1095, que o Papa Urbano II – um antigo monge de Cluny – tenha lançado o apelo que daria origem à primeira das Cruzadas do Ocidente contra o mundo islâmico do Oriente. De igual maneira, é também do ordo bellatore que a Igreja lança mão para consolidar o seu projeto de expansão da unidade cristã, quando Inocêncio III em 1209 lança o apelo para que soberanos e cavaleiros do norte da França organizem uma Cruzada dirigida contra a heresia cátara que começava a se expandir na região do Languedoc francês.

7 Balanceando as diversas perspectivas

Para retornar à questão mais específica das origens da trifuncionalidade e de sua interação subsequente com outros movimentos como a “Paz de Deus” e a “Reforma Gregoriana”, pode-se dizer que, nos seus primórdios, o último e amplo movimento acima descrito corresponde a uma clara necessidade da Igreja de proteger-se contra a violência e as intrusões dos novos poderes laicos. Isso implicava, naturalmente, assegurar uma separação mais bem definida, na vida social e nos estatutos jurídicos, entre os leigos de um lado, e os clérigos e monges, de outro. É importante ressaltar que na verdade este impulso de separar muito claramente o âmbito religioso e o âmbito temporal, tal como demonstra o próprio Georges Duby em outro texto intitulado “As origens da cavalaria” (1968), tem precedentes anteriores que remontam ao próprio período carolíngio – onde a Igreja viu-se na necessidade de afirmar sua identidade e autonomia perante os poderes dos soberanos carolíngios.

Mas é com o novo contexto de fragmentação dos poderes, que regerá o surgimento da sociedade feudal, que esta necessidade torna-se ainda mais premente, e agora localizada no plano dos poderes locais, de modo que é precisamente neste momento que começa a tomar forma uma “teoria da trifuncionalidade”.

A emergência de uma teoria que busca clarificar definitivamente a separação entre o âmbito religioso e o âmbito laico – e depois uma nova divisão entre bellatores e laboratores dentro deste último âmbito – situa-se, portanto, na confluência entre as necessidades dos estabelecimentos religiosos enfrentarem os poderes locais de seu tempo, e a necessidade de se reagir contra uma história anterior que havia se misturado estreitamente nas estruturas carolíngias as ideias de Igreja e Cristandade, chegando até mesmo confundi-las na “pessoa real” (DUBY, 1976: 39).

Desta maneira, o rastreamento empreendido por Duby das fontes medievais que precedem a teoria da trifuncionalidade mostra que, primeiro, teria surgido uma necessidade de maior explicitação da divisão entre o âmbito religioso e o âmbito laico – portanto ainda uma oposição binária –, mas que logo ficaria claro que seria útil subdividir o âmbito laico entre aqueles que representam os poderes dominantes, os ‘guerreiros’, e aqueles que trabalham, notando-se que os grandes estabelecimentos monásticos também viviam da exploração desta imensa mão de obra agrícola que lhes assegurava a subsistência e o lugar da Igreja, no seu conjunto, como a maior proprietária fundiária da época. Nota-se, aliás, que se a teoria da trifuncionalidade aprimora esta divisão do mundo laico em bellatores e laboratores, no que se refere ao âmbito religioso a sua tendência seria, ao contrário, a de aproximar “as duas principais ordines dos esquemas sociológicos carolíngios”, a dos clérigos e a dos monges (DUBY, 1976: 41). A Igreja mostra-se já aqui como um corpo que se quer manter à parte.