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Esta aproximação entre os modos de vida do monge e do clérigo secular, de modo a constituir efetivamente a noção mais fortemente enraizada de uma nova ordem – a dos oratores –, não se fez naturalmente sem resistências e lutas internas que se deram no próprio seio do mundo eclesiástico. Afinal, o caminho do monge e o do clérigo eram até então considerados coisas distintas. Exemplo disto são os protestos de padres milaneses que, pretendendo se opor à Reforma Gregoriana, acusaram o papado de querer impor aos clérigos seculares um modo de vida e um conjunto de exigências morais que não corresponderiam à vocação específica do seu ordo. Invocavam, como se pode entrever, um esquema tripartido anterior, que vimos mencionado na “teoria dos três graus” apresentada por Abbom de Fleury no seu Apologeticus adversus. Este esquema categorizava, como se fossem de certo modo degraus diferenciados, a espiritualidade leiga, o caminho dos clérigos e o caminho dos monges, sendo este último o mais perfeito. Adaptar o modo de vida clerical dos padres à espiritualidade monástica desta maneira era uma operação que não podia se dar assim tão fácil.

As pesquisas de Georges Duby sobre a “teoria da trifuncionalidade”, enfim, apresentam o mérito inquestionável de, por um lado, situá-la diante de um tempo em transformação, e de, por outro, situá-la dentro de uma rede intertextual que remete a formulações anteriores, embora não propriamente trifuncionais. Através desta rede é possível verificar como os propósitos das diversas formulações que antecedem a trifuncionalidade não se situam apenas no campo dos desejos de assegurar para a Igreja o lugar de um corpo à parte, mas também no campo da vontade de situá-la acima, de definir as outras duas ordens em relação a ela. É assim que já veremos nas Collationes, escritas por volta de 930 pelo Abade Odon de Cluny, a afirmação de que “os poderosos recebem de Deus a espada, não para maculá-la, mas sim para perseguir aqueles que vão contra a autoridade da Igreja oprimindo os pobres” (DUBY, 1989b: 33).

Um balanço comparativo, enfim, nos permitirá avaliar complementarmente as proposições de Georges Duby e Jacques Le Goff acerca da teoria da trifuncionalidade. A teoria, concebida como uma concepção sujeita a múltiplas reapropriações, é vista por ambos como uma concepção que se constrói diante dos desafios de sua época, e que denota um projeto de agir sobre a sociedade. No caso de Georges Duby, que procura analisar as formulações trifuncionais tanto no contexto de sua época como no interior de uma rede intertextual, a ênfase está nas possibilidades apresentadas pela teoria da trifuncionalidade com vistas a atender aos interesses da Igreja de se colocar como um corpo à parte e perfeitamente protegido, pronto a se beneficiar das duas ordens que constituem o mundo laico. Já no caso de Jacques Le Goff, a ênfase dirige-se aos modos como a teoria da trifuncionalidade foi reapropriada com o objetivo de fortalecer também a instituição monárquica. Ambas as posições, na verdade, interagem complementarmente, e permitem avaliar a trifuncionalidade como fenômeno complexo, que atende aos diversos interesses sociais e políticos de seu tempo, sem deixar de dialogar com outras épocas através da rede intertextual em que se inscreve.

8 A trifuncionalidade: suas variações e ambiguidades

Seria oportuno destacar ainda que o esquema tripartido não se adaptou em todas as sociedades da Cristandade Ocidental, ainda que tenha desempenhado uma função simbólica importante mesmo nas regiões onde não podia se concretizar funcionalmente. Vale lembrar as observações de José Mattoso sobre a medievalidade portuguesa, e Ibérica de modo mais abrangente. A ideia de uma trifuncionalidade mais ou menos fechada, conforme indica o historiador português, não teria paralelo na Península Ibérica da Reconquista, onde o combate a cavalo era tantas vezes feito por não nobres (MATTOSO, 1986).

De igual maneira, convém lembrar que a teoria da trifuncionalidade – que em regra impunha um esquema de segregação entre ordens que corresponderiam a funções distintas – também permite nos seus interstícios as ambiguidades e fusões funcionais. O exemplo mais conhecido é o das “ordens militares”, que unem em uma única pessoa as ordens oratore e bellatore. Existem por outro lado estudos que procuram mostrar que não estavam tão distantes as representações produzidas na ordem bellatore e na ordem oratore. É o que discute B.H. Rosenwein, em um ensaio intitulado “Feudal war and monastic peace: Cluniac liturgy as ritual agression”, onde se mostra a interpenetração das representações guerreiras na vida monástica através do miles que, ao entrar para um mosteiro, abandonava seu cavalo e sua espada para passar a empunhar armas espirituais infinitamente mais eficazes que o mundo (ROSENWEIN, 1971: 129ss.).

A questão da relação do ordo oratore com o ordo laboratore é ainda mais complexa. Sendo uma das maiores proprietárias fundiárias de seu tempo, a Igreja vivia da exploração dos trabalhadores da mesma maneira que os senhores. Mesmo quando os monges conseguiam efetivamente realizar a sua vida individual de pobreza, isto contrastava radicalmente com a riqueza coletiva do seu mosteiro, que por vezes administrava imensos domínios que submetiam os trabalhadores a condições tão duras como ocorria em qualquer propriedade senhorial. Por outro lado, a antiga Regra de São Bento preconizava uma divisão em três do tempo: o dia de um monge deveria ser repartido em um terço para a contemplação individual e as preces coletivas, um terço para o trabalho manual, e outro terço para o trabalho intelectual. Embora a maioria dos mosteiros procurasse orientar-se pela regra beneditina, a verdade é que por volta de 1100, nas abadias ligadas a Cluny, os monges quase já não desempenhavam trabalhos manuais, a não ser o serviço especializado de copistas e iluminadores de manuscritos. A difusão da teoria da trifuncionalidade, ao definir monges e clérigos a partir da função oratore, praticamente reforçava esta tendência que estava bem amparada pela própria riqueza eclesiástica: o monge não trabalhava porque não precisava – já que o mosteiro contava com milhares de laboratores à sua disposição e além de tudo estava frequentemente recebendo doações – e também porque a concepção trifuncional da sociedade legitimava perfeitamente a sua vida contemplativa e oracional.