Um novo tipo de monaquismo iria surgir no século XII propondo precisamente uma revalorização do trabalho. Os monges cistercienses, tendo como nome mais ilustre Bernardo de Clairvaux, iriam empreender precisamente uma crítica ao monaquismo cluniacense com base na opulência dos mosteiros de Cluny e na recusa de seus monges ao trabalho.
No esquema tradicional da trifuncionalidade, pode-se dizer que os monges brancos de Cister conseguiram concretizar uma participação nas duas ordens – a dos oratores e laboratores – e de fato incluíram no seu ideal de vida monástica a realização de trabalhos efetivos e úteis. Embora continuassem administrando propriedades que abrigavam agricultores dependentes, eles mesmos frequentemente trabalhavam e foram até os responsáveis pela descoberta de novas técnicas de trabalho agrícola.
De igual maneira, também em movimentos oriundos do mundo laico poderemos encontrar as interpenetrações entre as ordens laboratore e oratore. Exemplo é o grupo dos Humiliati – surgidos em Milão por volta de 1175 – e que na sua origem eram tecelões que levavam uma vida em comum repartida entre o trabalho e a oração. Seu ideal apostólico incluía o trabalho, a oração, a vida austera, e uma vida pastoral que logo os conduziu a pregar em público sem autorização da igreja local, razão pela qual foram excomungados em 1184 pelo decreto Ad abolendam. Mais tarde Inocêncio III os reintegrou à Igreja (1199), dentro de um conjunto mais amplo de estratégias que visavam considerar a possibilidade de integrar à Igreja as heresias que eram caracterizadas por meras questões disciplinares, como a intenção de pregar sem a devida autorização eclesiástica. Os humilhados constituíram suas práticas religiosas e suas vidas cotidianas efetivamente no entrecruzamento das ordens laboratore e oratore. André Vauchez, ao analisar a sua posição no quadro da Espiritualidade na Idade Média Ocidental, considera que eles não deixam de ser “o primeiro agrupamento leigo a ter associado a uma vida de oração intensa um trabalho concebido como um meio autêntico de existência” (VAUCHEZ, 1995: 108).
À parte as interpenetrações concretas e imaginárias entre as ordens, é sempre importante ressaltar que a distância entre clérigos e leigos, que a teoria da trifuncionalidade procura estabelecer com tanta nitidez, encontraria mesmo uma expressão concretizada na arquitetura interna das igrejas. No século XII, lembra André Vauchez, apareceria a jube, “vasta barreira de pedra, ornada de esculturas, que isolava os clérigos agrupados no coro dos fiéis reunidos na nave” (VAUCHEZ, 1995: 63). Com estas modificações arquiteturais, poderíamos acrescentar, a trifuncionalidade medieval, ou o registro da passagem desta noção através da história, concretiza-se definitivamente no espaço.
Referências
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