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Papado e império na Idade Média. Eis aqui dois projetos universais para uma mesma Cristandade Ocidental que começa a se consolidar desde os primórdios medievais. Do jogo de avanços e recuos entre os poderes conquistados por cada um destes dois projetos – um jogo político tão intenso e vívido na Idade Média, mesmo que algumas vezes apenas ao nível do imaginário – não parecerá haver grandes resquícios à medida que se adentra a Modernidade. De fato, quanto mais nos afastamos da Idade Média, o “Império” parece se dissolver mais e mais na história, convertendo-se a princípio em mera ficção política, desaparecendo a seguir, apesar da sua polêmica ressurgência em projetos políticos bem posteriores, tal como ocorreria com o projeto ariano do III Reich proposto pelos nazistas já em pleno século XX.

Falaremos aqui, naturalmente, de uma ideia muito específica de Império – ancorada em uma história que remonta ao Império Romano e à constituição do Império Carolíngio por Carlos Magno – e não dos inúmeros impérios ou ideias de império que puderam estimular até mesmo o soberano da Etiópia contemporânea a se conclamar imperador.

À parte quantas ideias de império surjam e ressurjam no mundo contemporâneo, e à parte quantos e quantos soberanos almejem ser chamados pelos seus súditos de “imperadores”, a questão é que a ideia de um “império universal”, é disto que aqui se trata, já dificilmente se sustenta em um mundo que parece extrair a sua própria substância da diversidade e da exploração, às vezes brutal, desta mesma diversidade.

Enquanto isso o papado, por sua vez, prossegue neste mesmo mundo que já se vê dividido em inúmeras instituições eclesiásticas a partilharem o universo religioso no Ocidente cristão. Eis aqui uma instituição mais duradoura que foi forçada a se adaptar mais consistentemente à compreensão dos limites de suas antigas ambições universalistas.

O presente ensaio propõe-se a examinar, em torno das ideias de império e de papado, a história de uma oposição que assinalou uma presença significativa e recorrente no decurso de toda a Idade Média.

Principiaremos por uma tentativa de compreender, em suas definições mais irredutíveis, em que ideias fundamentais e bases históricas ancoravam-se em cada um destes dois projetos, até que ambos começam a entretecer – em um Ocidente Medieval em constante mutação – uma história de alianças e conflitos políticos cuja compreensão é certamente fundamental para um entendimento mais pleno da própria história medieval.

1 Império e Igreja como projetos universais

A oposição entre império e papado no decurso da Idade Média – bem como suas interações várias – desenvolveu-se de maneira particularmente complexa sob o signo de dois grandes projetos que se postulavam como universais: o de uma Igreja Romana que passaria a se apresentar na Europa Medieval como o grande fator da unidade da Cristandade Ocidental, e o de um império do Ocidente que já não existia mais a partir da deposição de Rômulo Augusto em 476 d.C., mas que a partir daí nunca deixaria de pairar sobre o imaginário político dos novos reinos que, nesta parte ocidental do antigo Império Romano, dava agora origem aos inúmeros reinos europeus. Esta história deve ser recuperada a partir de seus primórdios, que remontam à Antiguidade Romana.

Impérios e domínios imperiais sempre existiram na história do mundo: do Império Persa ao domínio dos antigos atenienses sobre inúmeras cidades-estados na Grécia Antiga, isso apenas para citar dois exemplos entre tantos. A ideia de “império”, antes de qualquer coisa, sempre esteve associada à ideia de um poder exercido sobre vários povos. Frequentemente, o poder imperial nas suas diversas manifestações históricas esteve associado a ideias como a de “expansão”, “domínio absoluto” sobre determinado conjunto de territórios, ou ao menos de um poder que é reconhecido por outros poderes (daí a relação possível entre Império e Reino, à qual retornaremos oportunamente).

Com o desenvolvimento histórico do Império Romano, contudo, e particularmente quando este adota o cristianismo como religião oficial a partir de Constantino – aqui se reforçando o projeto imperial pelo contraponto de um segundo projeto totalizador, que era o de uma religião que se pretendia a única capaz de conduzir à salvação da alma – um novo matiz vinha se juntar a esta ideia: o de universalidade. Em que pese que o Império Romano tenha sempre se confrontado no plano político com outras realidades políticas que também se postulavam como imperiais, a verdade é que a aliança com o cristianismo nos últimos séculos da Antiguidade Romana reforçara a ideia de um império universal, que almeja estender sobre todos o seu domínio, e sobre os seus eleitos uma proteção igualmente universal. Contudo, precisamente neste momento histórico em que a ideia de universalidade cristã vem ao encontro da ideia de universalidade imperial, o poder de Roma já não era o mesmo. Uma série de processos históricos que aqui não poderão ser abordados, e dos quais a pressão e entrada no Império Romano de inúmeros povos é apenas um dos muitos fatores, terminou por produzir uma ruptura que separou de um lado o chamado Império Romano do Ocidente, e de outro o chamado Império Romano do Oriente (futuro Império Bizantino). Estes eventos trouxeram uma complexidade peculiar: havia agora dois Impérios com projetos universais similares, com uma base cristã em comum, e edificados sobre uma cultura e história comum. Adicionalmente, a divisão entre um império ocidental e um império oriental produzira também a emergência entre duas igrejas cristãs: uma que passava a estar sediada em Roma, outra que passava a estar sediada em Bizâncio.

Contudo, se o Império Oriental teria uma longa vida histórica no decorrer de toda a Idade Média, o Império Romano do Ocidente não logrou perseverar na manutenção de sua unidade, e logo se partiria em uma grande quantidade de reinos amalgamados a partir da combinação das antigas populações que habitavam os territórios romanos com novos povos que haviam invadido o mundo romano desde o século III d.C., passando em muitos casos a integrar o antigo Império como exércitos federados ou mesmo reinos sob a tutela imperial. Em 476, Odoacro – rei de um povo que havia sido assimilado recentemente pelo Império no seu circuito de exércitos de mercenários, e que eram conhecidos por hérulos – depôs Rômulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente. Ao invés de tomar a coroa imperial para si, resolveu enviá-la ao imperador romano do Oriente, e a partir daí não se falaria por algum tempo em império, senão em referência ao imperador bizantino.

2 A aliança entre os francos e a Igreja, como preparação para o encontro entre dois projetos universais

A ascensão do reino Franco no cenário Europeu veio se combinar a um contexto em que a Igreja Romana – ela mesma detentora de territórios temporais na parte central da Itália – via-se afrontada por duas grandes ameaças que eram os povos lombardos, recém-chegados à península, e o Império Bizantino, que controlava a chamada Igreja Cristã Oriental. A sobrevivência da Igreja Romana era ameaçada neste contexto de muitas maneiras – tanto territorialmente como doutrinariamente – e, por isso, o projeto do papado de se projetar como força cristã universal no âmbito do Ocidente poderia se combinar perfeitamente com o projeto de expansão do povo franco, já cristianizado.