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A passagem da dinastia merovíngia para a dinastia carolíngia, através de Pepino o Breve, é precisamente assinalada por uma aliança entre o reino franco e o papado, que ficou selada simbolicamente pela unção recebida por Pepino das mãos de Estêvão II.

Na geração seguinte, vinte anos depois, Carlos Magno encetaria uma aliança similar com o Papa Adriano I, a partir de um intrincado contexto de alianças e oposições que estão registrados em diversos anais da época, como o Liber Pontificalis. Fonte singular para uma compreensão dos aspectos políticos e simbólicos envolvidos nestes acontecimentos é a Carta de doação de Constantino, documento forjado nas oficinas do próprio papado de Adriano I como se fosse uma antiga carta em que o Imperador Constantino havia doado terras da Itália Central ao Papa Silvestre. Este documento, e a Carta de Pepino de 754 por ocasião da primeira aliança franca com a Igreja Romana, ancoraram a assinatura de um terceiro documento em que Carlos Magno estabelecia a sua própria aliança com Adriano I. A partir daí andam juntos os dois projetos – o de expansão do Reino Franco e o de universalismo espiritual da Igreja Romana sobre as populações cristãs do Ocidente – culminando com a coroação imperial de Carlos Magno no ano 800. Neste momento, Carlos Magno é, ainda mais do que antes, simultaneamente o depositário de um poder universal e o responsável pelo destino terreno da Igreja, tal como aparece tão bem expresso na capitular de Aix- la-Chapelle, divulgada em março de 802 (FAVIER, 2004: 309).

A coroação de Carlos Magno em 800, diga-se de passagem, representa apenas o momento de concretização maior de uma política carolíngia que já mostra a partir de 789, com a capitular Admonitio Generalis, uma clara mudança de rumos em direção à ideia de Carlos Magno assumir uma função imperial. Entre outros aspectos sinalizadores, já se vê claramente a ideia de que a autoridade do rei franco abrange “os fiéis de Deus e do rei”, colocando no mesmo plano as duas fidelidades (FAVIER, 2004: 471).

Assumido o título imperial por Carlos Magno a partir de 800, citaremos como momento fundamental para a evolução posterior das relações entre o projeto imperial carolíngio e o projeto universal da Igreja Romana a elaboração da Capitular de 817 – intitulada Ordinatio Imperii. Neste documento mandado redigir por Luís o Piedoso, três anos depois da morte de Carlos Magno e tendo aquele sido sagrado imperador na própria vida do primeiro imperador franco, delineiam-se com maior precisão os mecanismos de sucessão imperial no Ocidente, associando-os a um único herdeiro. No ano anterior, Luís o Piedoso já tivera o cuidado de receber a unção pontifícia das mãos do Papa Estêvão IV, de modo que o documento vinha acrescentar um peso de lei a uma prática que já trazia uma forte marca simbólica. A capitular registra vários delineamentos importantes: além de instituir por escrito a ideia de que o papa deveria coroar o eleito, fixava uma linha única de sucessão “que dizia que só poderia haver um único imperador”, e ainda sistematizava a ideia de um imperador reinando sobre reis – já que, ao mesmo tempo em que só haveria um imperador, poderia haver diversos reis sob a sua autoridade imperial.

Essa ideia de um imperador acima dos reis era antiga – já que no Império Romano foram feitos vários reis sob a égide do imperador; aliás, a ideia da própria origem do reino Franco no século VI pairava sob a ideia de que este era um reino que pertencia ao Império. Contudo, agora esta ideia assumia novas conotações que buscavam delimitar mais claramente a separação do imperium em relação aos regna.

Singularmente, esta estrutura imaginada por Luís o Piedoso degradou-se na concretude política a partir do desmembramento do Império Carolíngio entre seus três filhos. Lotário, que ficou sendo o detentor do título imperial e que deu origem à dinastia dos otonianos, não iria exercer uma autoridade propriamente imperial sobre seus dois irmãos, e cada um dos três herdeiros passaria a governar um terço do antigo Império. De qualquer modo, esta ficção de império, que retomava a antiga tradição do Império Romano do Ocidente, estava daqui por diante fixada através de uma honra que pertenceria aos futuros herdeiros dos reis carolíngios. Em que pese que a honra imperial tenha a partir daí oscilado hesitantemente entre sucessores de um ou outro dos antigos territórios carolíngios, já desmembrados, e que apenas sob Carlos o Gordo tenha havido um breve momento de reunificação territorial, a ideia de império – mesmo que mais fictícia do que correspondente a uma realidade política efetiva – seria a base das futuras pretensões imperiais do Império Teutônico.

3 Império Teutônico

A coroação em 962 do primeiro imperador do Império Otônida, Oto I, conserva suas referências em relação à coroação de Carlos Magno. Para começar, Oto I firmara suas pretensões após uma série de campanhas de extensão de seu poder: sucessivamente, reunificara parte do antigo Império Franco através da anexação da Francia Oriental, conquistara a coroa de ferro dos lombardos em 952 e impusera-se aos húngaros em 955. Obtendo a aliança do Papa João XII, recebia deste, finalmente, a sagração imperial, dando início ao Império Otônida. A ele se seguiu Oto II, que foi sagrado em 976 e que – autodenominando-se Romanorum imperatur Augustus – completou o seu título com uma expressão solene que era mais uma referência direta ao antigo Império Romano. Oto III, em 996, imprime novos avanços na utilização da ideia de império, assumindo todo um simbolismo e uma imagística que buscavam reforçar ainda mais a sua filiação imaginária em relação ao antigo Império Romano. A partir dele, novos imperadores sucedem-se, embora o título tenha oscilado por dinastias distintas conforme a aclamação dos príncipes eleitores, que nesta época passaram a constituir a base de consulta para a escolha dos novos imperadores. Documento ímpar para a sistematização do imaginário imperial surge no império de Henrique III, quando se põe por escrito em 1030 um Livro de cerimônias da corte imperial, que buscava estabelecer uma minuciosa ritualística imperial com claras referências na pompa de Bizâncio. De igual maneira, no século seguinte iria ser recuperado um Ordo de consagração imperial do início do século X, multiplicando ainda mais a ritualística e os objetos simbólicos a estarem presentes na sagração.

Em que pese toda uma ritualística que procurava reunir o imaginário imperial e a simbolística cristã através de uma aliança entre o império e o papado, a verdade é que a questão da sagração imperial oferecia um profícuo terreno para que começassem a surgir conflitos entre o poder espiritual e o poder temporal. Era o imperador que fazia o papa – como ocorrera com Oto III, que impusera a Roma um Papa Clemente II que logo depois o consagraria – ou era o papa que deveria fazer o imperador, como declararia o Papa Gregório VII, em 1076, no documento denominado Dictatus Papae? A Reforma da Igreja Medieval, aliás, tinha produzido em 1059 o decreto que instituía a eleição do papa pelos cardeais, assinado pelo Papa Nicolau II e que para a sua elaboração tivera precisamente a influência do reformador Hidelbrando (futuro Gregório VII), ligado à Abadia de Cluny. Mas pode-se imaginar como a questão era complexa, agora que nos diversos reinos da Cristandade os reis – e também o imperador – tentavam impor o direito de indicar autoridades eclesiásticas nos territórios que governavam. Para entender este ponto será útil tentar compreender a seguir as relações concretas da Igreja com o mundo feudal que a cercava por todos os lados.