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De fato, o complexo panorama das relações entre a Igreja e os diversos poderes temporais nos vários territórios europeus mostrava desde os primórdios do século XI uma situação pouco cômoda para a Igreja. Na França, os primeiros reis capetos – de modo a angariar proventos importantes para as tesourarias régias – tinham adquirido o hábito de vender pelos melhores preços os cargos eclesiásticos reais que estavam sob seu controle, e com frequência impunham pela força os candidatos episcopais de sua preferência. Na Inglaterra, as aristocracias locais da primeira metade do século XI haviam praticamente se assenhorado das dignidades eclesiásticas. Após a conquista de Guilherme I em 1066, o controle da situação passa ao poder régio, que distribuíra os assentos episcopais aos clérigos normandos, mas assegurara a sua sujeição à coroa. No império, era já uma tradição que remontava a períodos anteriores a designação imperial de bispos, aos quais eram concedidas frequentemente, aliás, funções condais que se misturavam às funções pastorais. Neste contexto, os bispos estavam inteiramente sujeitos ao imperador ou a outros governantes temporais, que lhes concediam a investidura através de dois instrumentos simbólicos importantes – o báculo e o anel –, imagens em torno das quais em breve iria se desenvolver uma verdadeira guerra de representações entre o papado e o império. O “báculo” era o símbolo da jurisdição; o “anel” o símbolo da união mística com a Igreja.

Vazando transversalmente a sociedade eclesiástica de alto a baixo, a interferência dos poderes temporais na Igreja era manifesta, e mesmo as paróquias rurais estavam integradas aos poderes senhoriais através do controle dos grandes proprietários que eram herdeiros dos fundadores destas igrejas. Muito habitualmente eram eles que designavam os ministrantes das paróquias que orbitavam em torno de seus senhorios, exigindo juramentos de fidelidade e participando das rendas e dízimas por elas recolhidas, configurando desta maneira uma estrutura tipicamente feudal. O quadro geral, portanto, era em todos os níveis o de uma intrincada confusão entre a função eclesiástica propriamente dita e o benefício temporal, fosse este concedido pelo imperador, pelo rei, ou mesmo pelo grande senhor.

Naturalmente que a investidura que procedia dos senhores temporais conflitava diretamente com a antiga noção canônica segundo a qual o ministério episcopal deveria ser concedido pelo clero e pelo povo da diocese correspondente. Embora essa noção não correspondesse a uma realidade no Ocidente Medieval, ela vinha acompanhada de uma forte carga imaginária.

Dois conceitos importantes que surgem da situação de confusão entre os interesses temporais e a função religiosa, no âmbito de uma moral eclesiástica, referem-se às ideias de simonia e nicolaísmo. O conceito de “simonia”, que no seu sentido mais estendido referia-se tanto ao tráfico de coisas santas e seu desvio, para finalidades profanas, como à compra de funções eclesiásticas, adaptava-se à situação dos clérigos, ou mesmo de leigos, que haviam comprado suas dignidades eclesiásticas àqueles que controlavam o direito de investidura. Na contrapartida, os clérigos investidos desta maneira também procuravam obter vantagens a partir da venda de cargos menores que passavam a estar sob sua jurisdição, além de obter pagamentos pelos sacramentos que deviam administrar em razão de sua função eclesiástica.

O “nicolaísmo” representava outro ponto importante de interferência entre o sagrado e o temporal, pois se referia aos padres que viviam amancebados e que, frequentemente, geravam filhos que poderiam postular direitos diversos. Alguns cargos, inclusive, eram transferidos hereditariamente. Na segunda metade do século XI, tanto a simonia como o nicolaísmo eram questões que movimentavam polêmicas que clamavam por uma solução nos meios eclesiásticos, e a Reforma Gregoriana, agora em curso, iria centrar-se diretamente nestes pontos.

4 Gregório VII: ponto de virada

Em 1073, quando Gregório VII ascende a papa, a Igreja estava em pleno desenrolar de uma reforma religiosa que começara a tomar forma a partir de 1050. Seu período de pontificado, entre 1073 e 1085, é, aliás, particularmente intenso em termos de novas propostas que visavam discutir a posição da Igreja no mundo. A atuação de Gregório VII neste contexto seria particularmente importante em três pontos centrais: o esforço de definir claramente os direitos e as responsabilidades do papado, a substituição do direito da Igreja Germânica pelo Direito Canônico, e a conquista da garantia de liberdade de eleição para o cargo de papa (BOLTON, 1985: 21).

Como grande reformador e homem consciente das transformações de seu tempo, Gregório VII percebeu que a sobrevivência e as possibilidades de desenvolvimento da Igreja, enquanto instituição, dependeriam seriamente de resolver algumas questões cruciais, e a primeira delas relacionava-se precisamente à necessidade de fixar a autonomia da Igreja em relação ao Império ou a qualquer outro poder temporal – o que implicava que todos os cargos eclesiásticos, e não apenas o Sumo Pontificado, fossem escolhidos na própria alçada da Igreja, e não impostos por interesses políticos ligados aos poderes temporais. Ao mesmo tempo, percebia que era preciso que o papado retomasse claramente a ideia de que era o sumo pontífice o líder máximo da Cristandade, acima de imperadores e reis. Em função desta última preocupação deve ser entendida a sua preocupação em reformular toda a imagística do papado, apropriando-se inclusive de símbolos e imagens do poder imperial. Com a utilização do gorro branco, que simbolizava o regnum, afirmava-se agora também como um senhor temporal, percorrendo o caminho inverso de imperadores que, desde Carlos Magno, procuravam afirmar sua imagem também de senhores espirituais da Cristandade. Da mesma forma, defendeu a ideia de que o poder espiritual do imperador estava mesmo abaixo de clérigos não muito elevados na hierarquia eclesiástica. O exame de um trecho da correspondência de Gregório VII será o suficiente para verificarmos, de forma concentrada, os diversos aspectos relacionados ao projeto de assegurar à Igreja autonomia e soberania perante os poderes temporais: