O papa não pode ser julgado por ninguém; a Igreja Romana nunca errou e nunca errará até o final dos tempos; a Igreja Romana foi fundada apenas por Cristo; só o papa pode depor e empossar bispos; só ele pode convocar assembleias eclesiásticas e autorizar a lei canônica; só ele pode revisar seus julgamentos; só ele pode usar a insígnia imperial; pode depor imperadores, pode absolver vassalos de seus deveres de obediência; todos os príncipes devem beijar seus pés (apud SOUTHERN, 1970: 102).
Compreende-se dentro deste programa que uma das primeiras preocupações de Gregório VII tenha sido a de proibir enfaticamente a investidura leiga, isto é, a escolha de bispos e abades por príncipes e imperadores. O Dictatus Papae de 1076, que consubstancia esta proposta, causou imediata reação do Imperador Henrique IV, que deu o papa como deposto. Este, reciprocamente, declarou o imperador como deposto e excomungado, e assim concretizava-se na prática a própria questão de que tratava o Dictatus Papae: quem teria o direito de nomear ou depor o outro? O imperador ou o papa? O gesto de Gregório VII ao depor Henrique IV era ainda mais contundente, pois proibia os vassalos de lhe prestar serviço, ameaçando-os com a mesma excomunhão que já destinara ao imperador. A conselho de seus assessores, Henrique IV capitulou e foi ao Castelo de Canossa em 1077, pedindo ao papa um perdão que foi prontamente concedido, resolvendo momentaneamente a questão em favor da Igreja.
O conflito entre o Papa Gregório VII e Henrique VII foi, contudo apenas um dos diversos confrontos da época entre o papado e o Império, que estão na base da chamada “Querela das Investiduras”. Depois de novos acontecimentos conturbados, onde o Imperador Henrique IV teve de enfrentar militarmente um concorrente ao seu título chamado Rodolfo, e onde Roma fora saqueada por normandos até que por fim Gregório VII falece em seu exílio em Salermo, um novo papa terminou por ser empossado pelo imperador com o nome de Clemente III – o que vem a mostrar que a Querela das Investiduras estava longe de ser resolvida.
A questão das investiduras só estaria definitivamente resolvida em 1122, com a Concordata de Worms, que foi assinada entre o Imperador Henrique V e o Papa Calisto II, estabelecendo-se que ao papa caberia a investidura espiritual (anel e cruz) e ao imperador a investidura temporal (o báculo). Na prática, ficava definido que os bispos, atuantes nos territórios do Império Teutônico, não seriam mais funcionários do estado, e sim vassalos do Império. O episódio assinala de certo modo uma vitória do projeto de supremacia do poder papal sobre os poderes políticos, mas na verdade novos confrontos surgiriam no futuro. A leitura do texto da Concordata de Worms mostra como a questão entre a Igreja e o papado – para além de questões concretas e embates que podiam chegar até confrontos violentos entre os partidários de um ou outro lado – dava-se também no nível de uma autêntica guerra de representações. Assim, as eleições episcopais e abaciais seriam livres, envolvendo apenas o clero, mas por outro lado deveriam se desenrolar na presença de um delegado do imperador (o que, naturalmente, é apenas uma contrapartida simbólica para um poder institucional que fora inteiramente restituído à Igreja). De igual maneira, o metropolita deveria outorgar a investidura eclesiástica ao novo eleito, o que novamente estabelecia um acerto simbólico. As decisões relativas aos objetos de investidura, partilhadas entre o poder imperial e o poder eclesiástico, por fim, conformam um gestual simbólico importante nesta guerra de representações.
5 O Império e a diversidade interna
Antes de prosseguirmos com a questão do confronto entre os poderes temporal e espiritual, examinemos mais rapidamente um campo de tensões que, em contraponto à questão da oposição entre papado e Império, dava-se no próprio âmbito dos poderes temporais. O Império deve enfrentar, na sua realidade interna de força política e por vezes de concretização territorial mais ou menos extensa, singularidades as mais diversas. A entidade política do “reino”, por exemplo, surgirá como um ponto importante. Mas antes de falar nesta questão mais complexa, lembremos também a diversidade interna dos que disputam ou se opõem ao Império. Há por exemplo verdadeiras oposições familiares que podem ser lembradas.
Neste âmbito, por exemplo, poderemos incluir o conflito entre guelfos e guibelinos. Os guelfos constituíam originariamente uma família descendente do conde bávaro Welf I, do início do século IX, que manteve uma irredutível rivalidade com os Hohenstaufen pela hegemonia na Alemanha de princípios do século XII às primeiras décadas do século XIII. Na medida em que os Hohenstaufen conseguiram se projetar ao nível de família imperial, os conflitos se produziram nesta oposição em relação aos guelfos, às vezes de forma violenta. Por outro lado, a família Welf alcançou o âmbito imperial em 1201, com a eleição de Oto de Brunswick à dignidade imperial com o nome de Oto IV, tendo para tal contado com o apoio de Inocêncio III.
Mais tarde, os guelfos seriam novamente suplantados pelos hohenstaufen. A partir de 1240, estas rivalidades familiares cristalizam-se em conflito partidário na Itália, surgindo o partido dos “guelfos” (de Welf) e “guibelinos” (de Waiblingen, que era simultaneamente o nome do Castelo dos Hohenstaufen como o seu grito de guerra). Neste contexto, os guelfos – pelo menos no princípio – tenderam a apoiar o papado na sua oposição aos imperadores. Num período posterior, estas origens ligadas a rivalidades familiares e a posições relacionadas ao conflito entre Império e papado tenderam a serem esquecidas em favor da cristalização de uma irredutível hostilidade que passou a contrapor guelfos e guibelinos como facções rivais nas comunas italianas. Mas aqui já nos afastamos da questão Imperial propriamente dita.
Há ainda uma outra questão de máxima importância a ser problematizada para a compreensão dos problemas que enfrentava a ideia de Império no Ocidente Medievaclass="underline" a sua relação com uma terceira entidade a ser considerada, o “reino”. Na Antiguidade Romana, quando começam a afluir para o Império os diversos reinos bárbaros que começam a se confrontar com o mundo romano e, em muitos casos, a serem absorvidos por este, ganha força a ideia já antiga de que o Império contém reinos dentro de si, ou a ideia de que o imperador poderia fazer reis. O Império, no quadro das abstrações temporais desenvolvidas a partir do Ocidente Medieval com base na referência à Antiguidade Romana, deveria ser uma categoria superior à de Reino.
Contudo, o Império Teutônico, em fins do século XII, já estava limitado a um território específico, a Germânia, e isso traria um ponto de tensão para a ideia de império, já que o imperador na prática reinava sobre um espaço limitado. Dito de outra forma, a ideia de império encontrava resistências também na rede dos demais governantes temporais da Europa Medieval, já que na prática o Imperador Teutônico não era mais poderoso do que muitos dos reis europeus.