Outro aspecto que favorece o crescente sucesso e projeção de ideia de “realeza” por oposição à ideia de “império”, particularmente no período da Idade Média Central, foi certamente a adaptação da realeza ao imaginário feudal. É bastante singular a posição do rei no esquema tripartido que concretiza a teoria da trifuncionalidade – este esquema imaginário, mas fortemente influente em algumas regiões do feudalismo europeu, segundo o qual o mundo estaria distribuído entre as ordens oratore, bellatore e laboratore. O rei conseguia na verdade congregar todas as dimensões funcionais. Rei dos oratores, ele não deixa de participar ao seu modo da natureza e dos privilégios eclesiásticos e religiosos (LE GOFF, 1980: 80). Rei dos bellatores, ele é o primeiro dos guerreiros, e nesta função concretiza certas ambivalências que dele fazem tanto um rei feudal – um primus inter pares que se apresenta como a “cabeça” da aristocracia militar – como também alguém que é colocado fora e acima dela (LE GOFF, 1980: 80). Uma avaliação mais completa do esquema poderia ainda situá-lo como o ponto de confluência das três ordens, e o aspecto de “rei dos laboratores” apresenta-se como a função régia de garantir a ordem econômica e assegurar a prosperidade material (LE GOFF, 1980: 82).
A imagem do rei como aquele que participa simultaneamente das três ordens ajuda a compreender, particularmente, que o principal objetivo do esquema tripartido seria representar a harmonia entre as ordens, a “interdependência”, a solidariedade entre as ordens. E explica também, conforme propõe Le Goff, o sucesso crescente que apresentaria a imagem do “rei” – árbitro que harmoniza todas as ordens – em relação à imagem de “imperador”, condenada por uma dualidade “império” versus “papado” que se fundava na irrealizável distinção entre espiritual e temporal (LE GOFF, 1980: 83).
6 Novas projeções imperiais
O Império Teutônico, contudo, ainda conheceria um novo momento de fortalecimento da ideia de império frente ao papado.
Frederico Barba-Roxa (1123-1190) seria o protagonista imperial de um dos momentos mais efervescentes da disputa entre Império e papado, uma vez que nesta época o conflito terminou por gerar uma série de textos e documentos importantes de um lado e de outro. Assim, Oto de Freising, tio do imperador, elaborou em favor das pretensões imperiais um texto denominado Duas cidades, onde o povo franco era retratado como aquele que Deus escolhera para dar continuidade ao Império Romano. Através do Império Franco, passava-se ao Império Teutônico com um reforço da ideia de que o imperador seria um representante de Cristo e chefe da Igreja, no mesmo nível do papa.
Esta ideia já havia sido consolidada séculos antes por Carlos Magno em uma série de capitulares posteriores à sua sagração imperial em 800, onde abundam imagens como a de que o imperador franco havia recebido de Cristo a missão de ser o “leme da Igreja”. Esta imagem aparece explicitada no Libri Carolini – uma longa capitular de 228 páginas in quarto que foi elaborada por teólogos do porte de Teodulfo e Alcuíno entre 791 e 794. A exemplo do primeiro imperador franco, Frederico Barba-Roxa procurou ancorar- se em textos que defendessem a sua posição, e daí o papel das Duas cidades, de Oto de Freising. A utilização da expressão “sacro imperium”, aliás, surge precisamente em 1157, de modo a chamar atenção para o caráter sagrado do Império, e é sintomático também que em 1165 tenha ocorrido a canonização de Carlos Magno, o que vinha ao encontro dos interesses de Frederico Barba-Roxa – descendente em linha direta de Carlos Magno – em reforçar o aspecto sagrado do Império ao mesmo tempo em que realçava a sua continuidade em relação ao antigo Império Franco.
Os desenvolvimentos do Império Teutônico sob a dinastia dos Staufen, iniciada por Frederico Barba-Roxa, também mostram a preocupação em fixar muito claramente os mecanismos de escolha do imperador. Este deveria ser escolhido pelos príncipes dos diversos territórios do Império Teutônico, bem de acordo com a antiga tradição dos povos germânicos que costumavam aclamar os seus reis. O papa apenas ratificaria uma escolha que se dava inteiramente dentro do âmbito temporal, cumprindo notar que em 1200 já aparecem claramente especificados os elementos básicos de um colégio eleitoral germânico cuja função seria a de designar o imperador. Percebe-se, assim, que, ao mesmo tempo em que um papado diretamente empenhado na Reforma da Igreja tinha uma preocupação muito clara em assegurar que os papas fossem selecionados pelos altos representantes do quadro eclesiástico, também o imperador preocupava-se em que a escolha da dignidade imperial se desse nos limites do poder principesco. Em suma, ambos os poderes – temporal e religioso – tinham pretensões de interferir um no outro, mas empenhavam-se a todo o custo em conservar sua própria autonomia.
Enquanto os imperadores da dinastia Staufen se sucedem, com Henrique VI e Frederico II, o papado continuaria a sustentar uma teoria das relações entre Igreja e Império que desse mais autonomia aos clérigos e, sobretudo, que trouxesse a posição do papado para uma colocação mais relevante na condução dos destinos da Cristandade. Com Inocêncio III, que assume o pontificado em 1198, a Igreja conseguiria novos avanços. O ponto de vista defendido pela Igreja, embora também se referenciando no antigo império carolíngio, sustentava que de fato o Império havia sido delegado a Carlos Magno, mas o papa seria na verdade o seu verdadeiro depositário. Assim a ideia é que a Igreja era quem deveria entregar ao imperador a espada, para que este desempenhasse o serviço de defender o mundo cristão. A posição de Inocêncio III é confirmada por Gregório IX e Inocêncio IV, e pela altura de meados do século XIII está completa a Reforma institucional da Igreja na Idade Média, que avançara também em diversos outros aspectos de seu domínio sobre o espaço da Cristandade ao impor a violenta repressão de heresias como o catarismo e ao assimilar a seus quadros as novas propostas de religiosidade trazidas pelas ordens menores dos franciscanos e beneditinos.
Enquanto a Igreja sai fortalecida, nestes mesmos meados do século XIII o Império já não consegue prosseguir para além de Frederico II com seus planos de fazer prevalecer o seu próprio projeto universal para a Cristandade. Apesar de assegurar uma ampliação espacial do Império e aventurar-se em uma Cruzada que lhe permitira entrar em Jerusalém, o projeto imperial de Frederico II não se tornou representativo da Cristandade tanto porque o papado conseguira sucesso com a reforma institucional da Igreja, como porque a terceira ideia-força a ser considerada nesta questão, e sobre a qual atrás recorremos, passa a adquirir destaque a partir deste mesmo século XIII. A ideia de “reino” adquire precisamente uma projeção especial neste momento – tanto com a França de Felipe Augusto e São Luís, como com os reinos ibéricos que rapidamente começam a progredir no âmbito da centralização e da consolidação das instituições monárquicas, e também com a Inglaterra do mesmo período. Ainda estava-se longe da centralização monárquica que mais tarde prepararia o advento dos tempos modernos, mas de qualquer modo a autonomia temporal de cada reino era inquestionável e permitia que circulasse no início do século XIII o dito de que “o rei é imperador em seu reino”. Com isto, confrontado pelo projeto universal da Igreja, e tendo sua autoridade renegada pelos projetos particularistas de cada reino, a ideia de império após Frederico II era pouco mais do que um título vazio e uma ficção política. Não impedia, naturalmente, que a ideia de império ainda estivesse presente em um imaginário que produziu textos como o Speculum historiale, de Vicente de Beauvais, preocupado em construir uma narrativa acerca da sucessão de diversos impérios no decorrer da história do mundo. A esta época – entre 1250 e 1273 – se seguiria um interregno onde a ideia de império não se viu concretizada, o que atesta a sua vacuidade. Diga-se de passagem, não faltaram candidatos neste período – mesmo fora da dinastia reinante – a este que sempre fora um prestigioso título. Guilherme de Holanda, um primeiro candidato, ainda podia postular o título imperial dentro de alguma lógica territorial, já que era ligado a uma região inserida no antigo Império Teutônico. Contudo, surgem pretensões de estrangeiros como Ricardo da Cornualha, o que já vem mostrar que neste período o título de imperador era talvez pouco mais do que uma ficção extremamente honrosa. Também Afonso X, evocando aspectos genealógicos – já que era filho de uma Hohenstaufen –, requisitou por esta época o pomposo título ao papa, já que pela tradição a Igreja detinha o privilégio de sancioná-lo. O papa recusou-se lhe outorgar o título, dando origem às hostilizações mais diretas que começam a ocorrer nesta época entre o clero e o rei de Castela, gerando inclusive canções trovadorescas produzidas pelo próprio rei contra o papado que lhe renegara o título (Afonso X. Cantiga da Biblioteca Nacional, n. 463). Isto demonstra adicionalmente a emergência do fortalecimento de interesses régios vários em todo o Ocidente Europeu, e que já não podia haver mais naquele período um consenso em torno da ideia de dar uma base concreta ao imaginário do Império, que só seria retomado novamente em 1273. Neste ano, pondo fim ao interregno que já se estendia por demasiado tempo, Gregório X resolveu apoiar a eleição de Rodolfo de Habsburgo (1218-1291).