Contudo, a verdade é que o franciscanismo apresenta uma diversidade interna que precisa ser compreendida. Depois de surgir da incontestável liderança de Francisco de Assis – um mercador italiano que, ao despojar-se radicalmente de seus bens materiais, acabava de inventar uma forma de dedicação religiosa inteiramente nova – e após ser reconhecida em 1209 como “ordem menor” por Inocêncio III, a verdade é que a Ordem dos “Frades Menores” não teria sua unidade assegurada para além da morte de seu carismático fundador. Ainda mesmo no decorrer daquele atribulado século XIII em que a Igreja do Ocidente se veria às voltas com uma verdadeira explosão de novas propostas de religiosidades e de comportamentos heréticos, logo surgiria no próprio seio do franciscanismo uma primeira divisão entre os “espirituais” e uma maioria mais convencional, esta que depois ainda se desdobraria em um grupo mais tolerante de “conventuais” e um grupo de “cumpridores” que pretendiam retornar ao rigor da vida do próprio São Francisco. Para mais além, no século XVI, em pleno século humanista, surgiria a Ordem dos Capuchinhos, para não falar em correntes franciscanas como a dos fraticelli, que passaram a ser considerados seguidores de um desvio herético que tivera a sua origem no próprio âmbito do movimento franciscano.
Estes exemplos podem dar uma ideia inicial da significativa variedade que vai se desenvolvendo historicamente no próprio seio do franciscanismo. Ao mesmo tempo, poderíamos ressaltar outros aspectos da singular variedade presente na ordem fundada por São Francisco de Assis. Esta variedade impõe-se quando começamos a nos aproximar das trajetórias individuais dos próprios atores sociais que integravam o movimento franciscano. Muitos deles dedicaram-se a uma abnegada atividade apostólica que não afrontava necessariamente os poderes públicos, e em alguns casos até se tornaram confessores ou conselheiros de príncipes e reis, como o faria Gilberto de Tournai em relação a São Luís. Outros – como o pregador popular Geraldo de Módena, que ajudara a inflamar em 1235 o movimento da “grande devoção” em Parma – teriam desempenhado um papel mais marcante e contestador em um mundo urbano suscetível a turbulentas transformações. Outros franciscanos, por fim – como São Boaventura, Roger Bacon ou João Duns Escoto –, viriam ocupar um lugar destacado no seio do movimento da escolástica e das universidades, em contraste com irmãos menores que não tinham as mesmas preocupações culturais, ou mesmo em contraste com a posição do próprio São Francisco, que depois de iniciar o movimento costumava manifestar nas suas mensagens, com relação ao trabalho intelectual, “uma certa desconfiança, quando não uma hostilidade” (LE GOFF, 2001: 216).
De qualquer modo, se existe um primeiro e incontestável traço de unidade a ser destacado, é o de que o franciscanismo, como um todo, impactou profundamente a sua época, surgindo no seio de uma grande vaga de propostas de novas formas de religiosidade, algumas no âmbito da própria Reforma da Igreja Medieval, outras no âmbito de um movimento laico que ansiava por viver uma vida realmente apostólica, e outras ainda dentro de um quadro de movimentos que seriam logo classificados como heréticos. A proposta do franciscanismo – uma das duas ordens mendicantes surgidas no século XIII – conseguiu simultaneamente materializar uma prática social singular a partir de uma nova forma de religiosidade, e ocupar um lugar bastante especial na Igreja Medieval. Seus primeiros contemporâneos reconhecem explicitamente a sua importância e originalidade, e é bastante sintomático que Jacques de Vitry, cônego regular que escreveu por volta de 1220 uma Historia Occidentalis, atribua-lhe um lugar especial à parte, ao lado dos eremitas, monges e cônegos. Da mesma forma, Burchard d’Urspreg (U 1230) reconhece no franciscanismo – e também na Ordem dos Pregadores Dominicanos – este sopro de originalidade:
O mundo já ia envelhecendo, [quando] nasceram duas instituições religiosas na Igreja, [com] as quais, à semelhança das águias, a juventude se renova (LEMMENS. Testimonia Minora, apud LE GOFF, 2001: 194).
É preciso compreender junto a isto que o franciscanismo surge como um inquietante sopro renovador frente à Igreja de seu tempo, e também diante de outros movimentos que começavam a expressar novas formas de religiosidade ou fortes interesses em reformar antigas práticas religiosas. Para boa parte do monaquismo tradicional do século XII, por exemplo, a vita apostolica que ansiavam por viver era pouco mais do que uma vida comum de pobreza individual e orações, não apresentando um programa de trabalho pastoral e de ação no mundo junto às populações mais humildes. Contudo, no próprio seio do movimento monástico, e também entre os cônegos, foi se desenvolvendo a ideia de que uma verdadeira vita apostolica deveria passar a incluir algum tipo de atividade pastoral. É este ideal que iria se materializar nas primeiras décadas do século XIII com a proposta dos mendicantes. Desta maneira, o franciscanismo deverá ser visto dentro de um quadro geral onde se desenvolve uma nova forma religiosa de se situar no mundo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma forma de responder aos desafios de seu tempo.
Esta proposição nos leva à identificação de um segundo traço geral, mais complexo, que recobre toda a proposta do movimento franciscano e do qual também se aperceberam os seus contemporâneos. Diante de um quadro que fizera emergir uma série de movimentos religiosos dissidentes que se alicerçavam de um lado em uma referência exclusiva ao Evangelho, e de outro em uma aspiração religiosa puramente interior – muitas vezes utilizando o próprio Evangelho contra a Igreja tradicional e abordando esta aspiração a uma religiosidade interior como uma crítica à mediação eclesiástica – o franciscanismo traria, ao contrário, uma resposta surpreendente à possibilidade de “viver de acordo com o Evangelho, no seio da Igreja e no coração do mundo” (VAUCHEZ, 1995: 126). Ou seja, o movimento franciscano conciliava muitos dos anseios religiosos mais radicais com a possibilidade de atuação dentro da Igreja tradicional, e, mais ainda, rejeitando a solução monástica de “fuga do mundo”.
Neste sentido, uma via importante para a compreensão do franciscanismo é situá-lo simultaneamente frente a outros movimentos religiosos de seu tempo, e frente à Igreja tradicional, comandada pela Santa Sé. Relações do franciscanismo com outros movimentos têm sido pesquisadas e aventadas com bastante interesse pelos historiadores, e mesmo os contemporâneos, a seu tempo, pensaram nestas ligações. É assim que Burchard de Urspreg – cônego premonstratense que escreveu entre 1210 e 1216 – comparou os franciscanos a grupos valdenses de católicos pobres, que de fato tinham como um dos pontos principais de seu programa religioso o ideal da Imitatio Christi, tão característico do franciscanismo. Outras relações, por sua vez, poderiam ser feitas com os Humiliati, ou mesmo com os cistercienses. De qualquer modo, um fato de máxima relevância é a hábil absorção do movimento franciscano pela Santa Sé, o que contrapõe os destinos do franciscanismo ao de movimentos que a Igreja considerou necessário reprimir, notadamente sob a designação de serem heresias que precisavam ser combatidas por vezes de maneira violenta.