Os embates em torno da perspectiva da “decadência” do Império Romano já afloram, portanto, na própria época de desarticulação do mesmo. Em vista disso, amparando-se em uma cuidadosa análise historiográfica sobre a apropriação e reapropriações desta noção carregada de sentido valorativo, Santo Mazzarino procura ressaltar os problemas de utilização da noção de “decadência” pela moderna historiografia, e sua recomendação taxativa é a de rejeitar a compreensão da Antiguidade Tardia como um período de decadência.
A polêmica em torno da ideia de decadência aplicada à transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar outros autores, bastante problemática. Por fim, veremos oportunamente, ao lado das ideias de “declínio”, “queda” e “decadência”, outros conceitos que têm sido propostos pela historiografia recente, incluindo o de “desagregação”, todos com implicações mais específicas para o estudo do último período do Império Romano.
Novos campos historiográficos e novas leituras da passagem
Por ora, consideraremos que os desenvolvimentos modernos da historiografia sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média correspondem precisamente à superação desta dicotomia que, apesar de gerada por posições aparentemente inconciliáveis – o assassinato ou a morte natural do Império – trazem como pano de fundo um mesmo posicionamento historiográfico francamente baseado nos acontecimentos políticos em nível institucional. Com o desenvolvimento da historiografia do século XX, o olhar dos historiadores vai como que se desatrelando desta exclusividade em relação à história política de âmbito institucional, e cada vez mais novas dimensões vão sendo colocadas em cena como questões centrais passíveis de serem examinadas. Economia, cultura, mentalidades, imaginário, demografia – a afirmação de novas especialidades da história voltadas para o diálogo com estas dimensões fundamentais permite que um mesmo conjunto de acontecimentos seja beneficiado por diversificadas cronologias que dependerão do problema a ser examinado pelo historiador.
Os estudos de análise histórica de populações, por exemplo – ao instituírem a partir de meados do século XX um novo campo histórico a ser definido como história demográfica –, rechaçam por princípio a antiga maneira historiográfica de apodar de “invasões bárbaras” ao fenômeno do adentramento do Império Romano por povos diversos. Nem “invasões” e nem “bárbaras”, aliás, pois duplamente tem sido revista esta antiga maneira de interpretar o movimento de gentes que iria transformar tão completamente a face do Império Romano. De fato, os modernos estudos de história demográfica começaram a levar os historiadores a enxergarem em uma perspectiva mais ampla penetrações e migrações dos povos não latinos – na qual a parte das invasões seria apenas a ponta de um iceberg mais significativo a ser considerado. De outro lado, os desenvolvimentos de uma história cultural em perfeito diálogo com a Antropologia tornavam inaceitável a segunda parte da expressão – a que permitia denominar certos povos como “bárbaros”.
Da mesma forma, esta mesma história cultural, com sua revolução de novos objetos, permitiu um exame mais pertinente da interação entre as populações latinas e germânicas, ao lado da avaliação de seus confrontos de alteridade. O encontro e o choque de culturas – mais do que o entrechoque de exércitos – podia desempenhar a partir daqui um papel mais central nas análises historiográficas.
Ainda a propósito da reavaliação da questão do impacto dos povos não latinos sobre o Império Romano, será preciso considerar, acompanhando as interpretações historiográficas mais recentes, que os povos não latinos (germânicos, citas) agridem ou adentram o Império de muitas maneiras, e não apenas como invasores que podem ou devem ser analisados de um ponto de vista estritamente militar. Assim, por exemplo, se tomarmos apenas como foco de análise o caso dos godos nos seus dois principais ramos – os ostrogodos e os visigodos – poderemos examinar várias nuances de adentramentos em momentos diversos, e, certamente, um grande leque formado por estas nuances ao longo de todo um processo. Os visigodos já vinham enfrentando militarmente os romanos desde 251 d.C., obtendo algum sucesso, e registram-se no decurso do século III muitas de suas incursões militares a territórios romanos[7]. Mas já no século IV, quando sofrem terríveis derrotas diante de contingentes hunos vindos do leste e que os massacram e empurram para o Oeste, é na qualidade de uma massa de cerca de 100.000 refugiados visigodos que eles imploram e recebem autorização do imperador romano Valente para atravessarem o Danúbio de modo a viverem dentro dos limites do Império. Ali veremos multidões famintas e amedrontadas que atravessam o Danúbio, mais do que aqueles guerreiros conquistadores que logo ficariam imortalizados na imagem do saque de Roma no ano 410, e é nesta qualidade de uma massa de refugiados que eles são acolhidos em princípios do século IV, sendo notável destacar que passam inclusive a serem explorados pelas autoridades romanas com impostos excessivos e condições de trabalho desfavoráveis. A exploração é tanta, aliás, que já por volta da segunda metade do século IV eles estão a ponto de se rebelarem contra o Império que os acolhera, e é agora um confronto sob esta nova perspectiva – de povos que já estavam vivendo dentro dos limites do Império e sob o jugo das autoridades romanas, e que contra estas se rebelam – que veremos o embate de 378 entre romanos e visigodos, com a vitória destes últimos na célebre e marcante batalha de Adrianópolis, onde integram um exército confederado de povos não latinos que impõe pesada derrota ao exército imperial romano. Na sequência, promoveriam saques de diversas cidades em direção ao Mediterrâneo. Depois disso, com muitas negociações, os visigodos são integrados pelo exército romano – e já em 382 vemo-los estabelecidos pelo Imperador Teodósio I em uma província romana ao norte da Península Balcânica, onde desempenham um significativo papel na defesa daquelas fronteiras do Império até o ano 395. E será já como exército vinculado ao Império que mais tarde, a partir de 401, em novo movimento para o oeste, eles se insurgem, novamente se desvinculando da autoridade Romana, até que os acontecimentos conduzem ao saque visigodo de Roma, sob o comando de Alarico, em 410. A história não se encerra aí, e já em 418 veremos os visigodos se estabelecerem no sul da Gália e na Hispânia, já novamente como federados do Império, a partir de um acordo entre o Imperador Constâncio e o Rei Ataulfo dos visigodos. Mas em 475 assistiremos um novo movimento de independência onde Eurico estabelece um reino visigodo de Tolosa, desvinculado do Império.
7
Registram-se incursões godas nas províncias romanas da península Balcânica, as quais entre os anos de 270 e 275 chegam a impor aos romanos o abandono das terras da Dácia, que passam a ocupar. São precisamente os godos que vivem entre os rios Danúbio e Dniester que passam a receber a denominação de “visigodos”. Enquanto isso, os godos pertencentes a um outro ramo, estabelecido na Ucrânia, passariam a serem chamados de “ostrogodos”.