A assimilação à Igreja através do reconhecimento papal, aliás, permite que se compare ainda o franciscanismo ao segundo movimento mendicante que se afirmou na mesma época: o dos Frades Pregadores ou Dominicanos, também este assimilado pela Igreja e, mais do que isto, reapropriado pelo próprio papado como instrumento eficaz no combate às heresias, sendo depois conferidas aos frades dominicanos as funções repressivas que se manifestaram na oficialização da instituição da Inquisição. À parte este destino bastante diferenciado no seio da Igreja comandada pela Santa Sé, a comparação dos franciscanos com os dominicanos permite de um lado identificar um substrato de anseios em comum – ancorados no ideal original de uma vida baseada na pobreza evangélica, no amor caritativo e no proselitismo itinerante do mundo – e por outro lado opô-los no interior de outros movimentos, como a escolástica e o movimento das universidades, onde franciscanos e dominicanos frequentemente se situaram em campos opostos.
Com vistas a este aspecto, aliás, será oportuno lembrar a profunda relação dos franciscanos com a vida urbana. Tal como observa Michel Mollat em Os pobres na Idade Média, os mendicantes não se estabeleceram logo de início nas cidades, mas com o tempo foram se aproximando – a princípio se instalando nos subúrbios precariamente urbanizados – para finalmente se instalarem no coração das cidades (MOLLAT, 1989: 120).
Foi nas cidades que eles encontraram o ambiente mais propício para o seu trabalho pastoral, para o seu apostolado junto aos mais necessitados, e para o ideal que perseguiam de viver na pobreza material. Ao mesmo tempo, uma interessante simbiose se estabelecia entre franciscanos e a população mais pobre das cidades. Nestas – onde a pobreza fermentava sob o império do dinheiro – os franciscanos vislumbravam um território privilegiado para o seu apostolado; enquanto isso, muitos dos citadinos simpatizavam com os mendicantes porque neles viam uma resposta às suas inquietações morais (MOLLAT, 1989: 120).
É extremamente significativo, aliás, o fato de que através do estudo dos mendicantes torna-se possível estudar mais sistematicamente as próprias cidades medievais, tal como propôs Jacques Le Goff em seu célebre estudo sobre O apogeu da cidade medieval (LE GOFF, 1998). Enfim, para os medievalistas interessados no estudo das cidades medievais, será possível situar os franciscanos no âmbito de um revelador mosaico de correntes eclesiásticas urbanas que, ao lado do clero secular, do clero dos cônegos regulares saídos do movimento canônico do século XII, e do clero regular ainda ligado ao velho monaquismo beneditino, reservará um lugar verdadeiramente especial ao novo clero regular ligado às ordens mendicantes.
Por fim, uma última relação significativa, e talvez a mais importante, refere-se às relações dos franciscanos com a Pobreza – não com a ideia de “pobreza voluntária”, assumida como princípio fundador da própria Ordem dos Menores – mas com a pobreza gerada pelo mundo, aquela que encontra nas cidades medievais um extraordinário ponto de concentração e sujeita os seres humanos aos mais inquietantes contrastes. Neste particular, teriam sido os franciscanos os responsáveis pela introdução de uma nova visão sobre o pobre: que passa a ser valorizado em si mesmo, e não mais como mero instrumento para a salvação do rico (MOLLAT, 1989: 117). Esta mudança no conjunto de práticas e representações religiosas que se estabelecem sobre os pobres tornar-se-ia particularmente importante para o último período da Idade Média e para a transição para o mundo moderno, pois ela também será contraposta na passagem para o Período Moderno a um novo circuito de representações que procurava impingir ao pobre desempregado ou desenraizado o anátema de um “marginal” ou “vagabundo” que devia ser perseguido e enquadrado naquele sistema econômico e social que começava rapidamente a se transformar.
A proposta deste texto, a seguir, será a de verificar as relações do franciscanismo com as grandes questões do seu tempo – desde as décadas fundadoras no início do século XIII e particularmente no decorrer dos séculos XIV e XV quando, passado o século inicial de fundação do movimento e vivenciando a profunda crise que se desenvolve na Cristandade e no Ocidente Medieval, o franciscanismo extrairá de sua inserção no mundo uma prática de vida que se nutre das necessidades e dos desafios de dar uma resposta às angústias humanas destes novos tempos.
2 Fontes para o estudo do franciscanismo
Entre as fontes oriundas do próprio franciscanismo e de outros meios eclesiásticos, citaremos tanto as obras e documentos produzidos pela própria Ordem dos Menores, como a documentação da Santa Sé que a ela se refere. Um ponto de partida está nas regras oficiais da ordem – primeiro a Regula Primitiva, depois a Regula Prima (1221), e finalmente a Regula Bullata (1223) que foi aceita pelo Papa Honório III como regra definitiva da ordem. Naturalmente que as Regras sempre suscitam possibilidades interpretativas, e a variedade de posições relacionadas à Regra que havia sido estabelecida definitivamente chega a gerar a necessidade de uma bula papal, em 1230, onde o cardeal Gregório IX busca esclarecer alguns pontos polêmicos no documento intitulado Quo elongati. Bulas papais relativas à ordem começarão a aparecer em maior quantidade a partir de fins do século XIII, quando começam a despontar os conflitos entre algumas correntes mais radicais de “espirituais” franciscanos e as disposições a elas impostas pela Santa Sé. Ainda envolvendo os aspectos iniciais relacionados à institucionalização e clericalização da Ordem, constituem documentação de destaque os Estatutos de 1240 ou as Constituições de Narbona, ordenadas por São Boaventura em 1260, já na direção maior da Ordem dos Menores.
Entre as fontes franciscanas destacam-se naturalmente os vários “escritos” do próprio Francisco de Assis, inclusive o seu famoso Testamento, ou obras como o Cântico dos Cânticos – este que tem o mérito de realizar uma “osmose fecunda entre a cultura profana e a cultura religiosa” (VAUCHEZ, 1995: 131). As biografias sobre São Francisco, escritas entre os séculos XIII e XV por seguidores e simpatizantes, também constituem naturalmente um conjunto de fontes importantes para os historiadores analisarem as formas de pensamento e expressão tipicamente franciscanas. Da mesma forma, a correspondência entre franciscanos – a começar pelas cartas de São Francisco a companheiros de Ordem como Santo Antônio de Pádua – pode oferecer rico material de análise aos historiadores. Boa parte destas fontes encontra-se publicada pelas Éditions franciscaines – tanto no que se refere aos Escritos de Francisco de Assis (1981) como às biografias escritas por aqueles que viveram o período de expansão e consolidação da Ordem dos Menores (1968). Fontes que retratam a vida dos fundadores da ordem, como a “Vida dos três companheiros”, também se acham publicadas – entre outros documentos de importância capital – nos Arquivos históricos franciscanos organizados por Desbonnet (1974). Aqui também poderíamos incluir tratados diversos de autoria de franciscanos, como o Sacrum commercium escrito em 1240, ou, já no século XIV, o Arbor vitae cruxificae Jesu, de autoria do franciscano “espiritual” Ubertino de Casale (U 1330). Neste período começa particularmente a surgir uma maior variedade de concepções franciscanas, da qual podemos registrar como exemplo significativo as Meditações de Ângela de Foligno (U 1308), ou ainda os poemas de Jacopone da Todi (U 1306). Um gênero que surge com os próprios mendicantes, e por isto se mostra bastante significativo, é o dos “manuais de confessores”. Uma vez que o IV Concílio de Latrão havia sinalizado a necessidade de um maior empenho eclesiástico na educação das consciências, os mendicantes tomaram a si a tarefa de se oferecerem como confessores, e aqueles que estavam mais familiarizados com as práticas literárias deixaram por escrito estes manuais que são reveladores das práticas e representações medievais em relação à pobreza e a indigência. O gênero iniciado por Tomás de Chobham no século XIII atinge o século XIV com o manual de Jean André – apresentando a pobreza sob o “duplo aspecto de um estado de espírito e o de uma realidade vivida” (MOLLAT, 1989: 123). Os “manuais de confessores” são reveladores não apenas das representações dos próprios mendicantes, como também das representações sociais da época contra as quais eles frequentemente tinham de se defrontar. Assim, Jean André vê-se forçado a lembrar a todo instante que “a pobreza não é um vício”, e tampouco um “estado pecaminoso”, lançando indiretamente uma forte luz sobre as concepções então vigentes nas sociedades que procuravam conscientizar. O gênero dos manuais dos confessores seguiria adiante, e atingiria os séculos XVI e XVII.