A obra de Andrés Vauchez sobre A espiritualidade na Idade Média (1995) é também um clássico, permitindo situar o franciscanismo no âmbito de outros movimentos religiosos de sua época e no quadro de um desenvolvimento histórico das diversas formas religiosas através de contextos que se apresentam no decurso da Idade Média. Convém lembrar, inclusive, que Vauchez publicou mais recentemente um estudo específico sobre “Francisco de Assis e as ordens mendicantes” (VAUCHEZ, 2005), que aprofunda questões que são levantadas naquela obra mais geral. A análise de Vauchez avança no sentido de verificar como, no contexto turbulento de sua época, os franciscanos conseguiram sintetizar aspectos característicos de uma autêntica tradição cristã com as aspirações, por vezes contraditórias, de vários dos movimentos religiosos que tinham marcado as gerações precedentes (VAUCHEZ, 1995: 127).
Assim, o modelo oferecido pelo próprio Francisco de Assis com a sua história de vida, nem sempre concretizado pelas sucessivas gerações de franciscanos, permitiria associar em um único movimento o objetivo apostólico e a experiência ascética, o evangelismo integral e o espírito de obediência.
As relações entre os franciscanos e o meio urbano foram examinadas atentamente por historiadores como Jacques Le Goff. Merecem destaque dois ensaios específicos sobre a interação entre os mendicantes e os meios citadinos, Apostolat mendiant et fait urbain (LE GOFF, 1968: 335-352) e Ordres Mendiants et urbanisation (LE GOFF, 1976: 939-940).
Tal como assinala o historiador francês, os meios urbanos ofereciam o terreno ideal para a nova atitude trazida por estes homens que começavam a construir um novo modelo de santidade:
Querendo romper com a tradição monástica que preconizava a instalação na solidão, eles implantaram seus conventos (que não eram mosteiros) no meio dos homens e, a princípio, no meio daqueles “homens novos” de cujos problemas queriam encarregar-se e cujos desvios pretendiam combater, os homens das cidades (LE GOFF, 1998: 48).
“Convento”, e não “mosteiro”, é já uma primeira indicação a ser registrada. Georges DUBY, em um texto datado de 1966, já se preocupava em se inserir neste debate ressaltando muito claramente que o “convento” difere do “claustro” por não se fechar nele a vida dos religiosos. Não seria, neste sentido, mais do que um abrigo para o qual os frades, uma vez tendo cumprido a sua tarefa diária, poderiam regressar para dormir e partilhar a comida esmolada nos subúrbios (DUBY, 1978: 141).
Tal foi o interesse dos mendicantes em se instalarem no espaço urbano, que dominicanos, franciscanos, agostinianos e carmelitas logo teriam de chegar a um acordo concernente à sua distribuição equilibrada pela cidade. Assim, sob a mediação e determinação pontifical, chega-se a uma proposta que organiza a variedade e a quantidade mendicante no recinto urbano. Na historiografia francesa mais recente, este rastreamento da organização da diversidade mendicante no espaço urbano – com base nas fontes de época e na própria cultura material legada pelas cidades – foi abordado de maneira particularmente feliz por Jacques Le Goff:
No interior de uma mesma cidade, em consequência de diversas medidas do papado unificadas por Clemente IV na bula Quie plerumque de 28 de junho de 1268, cada convento teve que se estabelecer a menos de trezentas “varas” em linha reta (cerca de 500m) do convento mendicante mais próximo (LE GOFF, 1998: 49).
O número de conventos mendicantes inseridos em uma formação urbana, aliás, é apontado por Jacques Le Goff como um indicador eficaz para repensar os padrões de dimensionamento urbano, tal como estes eram sentidos pelos próprios medievais. Da mesma forma, o sucesso mendicante nos meios urbanos pode ser avaliado pela sua migração da periferia para o centro ao longo do século XIII, à medida que os mendicantes “faziam a conquista social, financeira e moral dos citadinos” (LE GOFF, 1998: 51).
4 Problematizações
A principal singularidade do franciscanismo, em meio ao grande conjunto de propostas religiosas que emergem na Idade Média, está associada ao fato de que São Francisco – o grande fundador da Ordem e de uma nova forma de religiosidade diante da questão da inserção espiritual no mundo – tinha se proposto a renunciar não só à propriedade individual, como também à propriedade comunitária. Desta maneira, resolvia-se, ainda que de maneira inquietante, a grande contradição dos antigos movimentos monásticos em que se contraditava a pobreza individual de seus membros com a imensa riqueza coletiva de mosteiros e ordens monásticas que haviam se transformado em grandes proprietários fundiários no período medieval. Além disso, a proposta de rigorosa pobreza voluntária deveria estar combinada a uma atividade secular de assistência e sacerdócio, esta mesma voltada principalmente para os pobres e desassistidos do mundo. Desta maneira, pela primeira vez um grupo de membros da Igreja cristã, que a seu tempo receberiam a legitimidade do reconhecimento papal, apresentava-se como “pobres” aos próprios pobres, recusando-se simultaneamente a “fugir ao mundo” como haviam feito diversos monges de sua época, e a assumir até mesmo a segurança que poderia lhe proporcionar a habitual estrutura da Igreja tradicional, uma instituição que constituía certamente uma das maiores forças de riqueza e poder em sua época.
É particularmente importante observar que, ao assumirem a designação de minores – que no vocabulário político das comunas italianas da época era a palavra destinada a designar as categorias da população tidas como inferiores ou que estavam excluídas do poder –, os franciscanos rompiam, “discreta, mas profundamente, o laço estreito que existia entre o estado religioso e a condição senhorial” (VAUCHEZ, 1995: 127). No texto original da Primeira Regra (1221) torna-se muito explícita esta recusa a apropriar-se do trabalho de outrem – como haviam feito os grandes mosteiros onde a pobreza individual do homem contrastava com a riqueza coletiva de instituições monacais que constituíam verdadeiras senhorias coletivas dotadas de inúmeros servos e trabalhadores dependentes.
Adicionalmente, um outro traço de rompimento em relação aos modelos hierárquicos da época residia nesta nova concepção de uma ordem religiosa na qual clérigos e leigos situavam-se em perfeita condição de igualdade, o que afrontava a tradicional cisão entre oratores e laboratores que havia sido tão ciosamente cultivada pela Igreja em uma rede intertextual cujas origens remontam aos textos primordiais de Adalberón de Laon e Gerardo de Cambrai. A percepção da permanência do imaginário das três ordens, mesmo já em períodos posteriores através de textos como o Tratado das ordens e simples dignidades de Charles Loyseau (DUBY, 1982: 26), já em pleno século XVII (1610), permite entrever que a tensão gerada pelo discurso mendicante em relação ao sistema hierárquico de sua época não deixava de se atualizar. O franciscanismo, ao seu modo, rompera com um certo ordenamento do mundo, que interessava simultaneamente aos poderosos do mundo laico e do mundo eclesiástico, e que encontrara na ideologia da trifuncionalidade medieval a sua expressão mais acabada.