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Resta então refletir sobre o problema. Por que, apesar de tantos traços que afrontam o discurso hierárquico de sua época, os franciscanos foram a seu tempo incorporados à Igreja como ordens menores?

Certamente que, de um lado, seria preciso nos referir à sensibilidade de Inocêncio III com relação aos problemas de sua época. Recolhendo uma experiência em que a Santa Sé tivera de enfrentar as novas formas de religiosidade, a elas classificando por vezes como heresias, ao papa não teria passado desapercebido um aspecto que também não deixava de constituir a complexa singularidade dos franciscanos e de outras ordens mendicantes. A “obediência” à Igreja era colocada pelos franciscanos como um princípio fundamental, o que os diferenciaria francamente dos valdenses que, mesmo proibidos de pregar pelo bispo local, optaram por afrontar a hierarquia eclesiástica em favor do apostolado evangélico que haviam assumido como missão. Do mesmo modo, ao contrário dos cátaros, que afrontavam diretamente a intermediação dos padres e a necessidade de seguir os sacramentos ordenados pela Santa Sé, a proposta franciscana era claramente a de integrar a estrutura da Igreja. Não é de se estranhar que as ordens menores e a ordem dos pregadores dominicanos, habilmente assimiladas pelo papado, tenham sido incumbidas de funções importantes que, para a Igreja, emergiam como necessidades daquela época: a divulgação da prática da Confissão, para a qual os franciscanos foram muitas vezes designados, e a repressão das heresias através da Inquisição, missão que logo caberia historicamente a alguns dos dominicanos.

Ainda com relação ao imaginário de poder presente no pensamento franciscano, já se observou, também, que as cidades mostraram-se desde logo como campos privilegiados para a missão apostólica dos franciscanos precisamente porque permitiam associar a “fraternidade” às solidariedades horizontais tão típicas dos meios urbanos (MOLLAT, 1989: 121). Ao esquema vertical e hierarquizado do prelado que “desce às suas ovelhas”, os franciscanos e outras ordens mendicantes traziam uma nova forma de solidariedade onde a própria pobreza era partilhada, onde se dissolvia o sentimento de superioridade que muitos dos clérigos possuíam por se representarem a si mesmos como uma ordem superior no triângulo da trifuncionalidade.

Será preciso levantar ainda um outro lado do problema. Com a expansão do franciscanismo e sua transformação em ordem, mostrou-se necessário aos fundadores do movimento criar uma hierarquia dirigida por um ministro geral e que a seguir se desdobra em “ministros” das províncias e em “guardiões” dos conventos, o que já aparece na Regula Bullata que foi aprovada pelo papado em 1223. As tensões de uma comunidade mendicante com as hierarquias que ela mesma deveria gerar enquanto ordem institucionalizada foram na medida do possível contornadas com a preocupação de que todas as suas funções hierárquicas fossem eletivas e provisórias. Desta maneira as necessidades prementes de o pensamento e prática religiosa franciscana se materializarem institucionalmente em uma ordem, lidando a partir daí com a diversidade interna e confrontando-a com uma sociedade externa tão rigidamente hierarquizada e plena de desigualdades econômicas, seja no século fundador ou nos séculos subsequentes, logo colocaria em questão a ideia discutida por alguns historiadores de uma “utopia franciscana” (VAUCHEZ, 1995: 130). A “utopia franciscana” seria realizável? A história do movimento não responde a esta indagação, senão com as inevitáveis contradições, como a da gigantesca e suntuosa Basílica de Assis, decorada pelos mais conhecidos pintores da época, e que foi erguida por um dos sucessores de São Francisco para guardar os restos mortais daquele que havia assumido por missão viver uma vida na mais pura pobreza, mas que, depois de morto, sobreviveria à sua própria morte eternizado por uma arte brilhante e opulenta, em contradição com um imaginário que permaneceria igualmente vivo e que continuaria inspirando movimentos posteriores.

5 Novos tempos

As últimas décadas do século XIII preparam as divisões que estariam por vir. Entrar-se-á em uma nova etapa da história do franciscanismo, e também do movimento mendicante como um todo. Em 1277, a escolástica – que abrigava a parte mais letrada das ordens mendicantes na pessoa dos mestres universitários franciscanos e dominicanos – sofre um abalo irremediável com a condenação de alguns textos que haviam constituído até então o corpo canônico do qual os filósofos e teólogos deveriam extrair a matéria de seus problemas acadêmicos. Há uma condenação de alguns textos aristotélicos e das posições mais racionalistas, na verdade expressão de divisões internas que acabaram a certa altura por opor filósofos e teólogos mais conservadores. Daí emergiriam novas correntes de pensamento no âmbito da escolástica desenvolvidas por franciscanos e dominicanos, como seria o caso do misticismo de João Duns Escoto ou do nominalismo de Ockham.

Mas as grandes rupturas estariam por se dar fora das disputas acadêmicas que constituíam o mundo escolástico dos universitários. O Concílio de Lyon marca um ponto de virada em diversos níveis, pois o papado resolvera intervir em uma questão muito cara à maioria dos franciscanos. Ao dispensar do “voto da pobreza” um franciscano chamado Jerônimo Áscoli, o papado trouxe à tona nos últimos anos de século XIII uma questão que já fervilhava há algumas décadas no seio da Ordem dos Menores. Desde a morte de São Francisco de Assis, estava no ar a questão do rigor a partir do qual os franciscanos deveriam seguir o modelo de vida inspirado pelo seu fundador. A ideia da “pobreza voluntária” – não apenas no âmbito individual, como ocorria em diversas ordens monásticas, mas também no âmbito coletivo – constituía, como já se colocou, um dos principais pontos de originalidade do franciscanismo. Por outro lado, o que permitira a São Francisco concretizar os radicais ideais evangélicos de seu grupo no interior da estrutura eclesiástica fora a sua declaração de “obediência ao papado” como outro de seus princípios fundamentais, e o Testamento que deixa aos seus companheiros franciscanos reitera isto uma última vez. No final do século XIII acontecimentos precipitam essa contradição: seria facultado ao papado, a quem os franciscanos deviam obediência primordial, o direito de interferir neste outro princípio fundamental da Ordem que era a questão da recusa em ter bens mesmo em comum?

A corrente dos “espirituais” estabelece-se precisamente entre aqueles que cerram fileiras em torno dos princípios fundadores da pobreza franciscana. Mas alguns vão mais além. Embora algumas bulas papais posteriores tenham expressado a tentativa de amenizar o conflito que surgira tão enfaticamente com o Concílio de Lyon (o Exiit qui seminat de Nicolau III, de 1279, e Exultantes de Martinho IV, de 1283), um grupo mais radical decidiu recorrer mais tarde ao Papa Celestino IV, que lhes autorizou saírem da Ordem para constituírem um grupo novo. Os papas subsequentes decidiram contudo dispersá-los ou persegui-los, o que se dá mais enfaticamente sob João XXII (1316-1334). Uma declaração deste último papa sobre a Regra Franciscana, mas tendo em vista os dissidentes que estavam a ponto de afrontar o papado – conclui enfaticamente com a seguinte afirmação: “Grande é a pobreza, mas maior é a integridade. O máximo é o bem da obediência” (Quorundam exigit, 1317).