Na bula Santa Romana (1317), João XXII chega a condenar alguns dos grupos mais radicais de espirituais como rebeldes, associando estes que logo seriam conhecidos como fraticelli a outros grupos heréticos como os beguinos. Este longo episódio que se iniciara em fins do século XIII e atingira a segunda década do século XIV, passando por uma sequência de papas até chegar em João XXII, expõe os claros sintomas não apenas de um movimento franciscano que começa a se fragmentar e perder a sua identidade inicial, mas também de uma Santa Sé hesitante e dividida que logo enfrentaria suas próprias cisões, sem contar as divisões que também começariam a ameaçar de fragmentação a Igreja como um todo. O século XIV será de fato século de cismas, de propostas reformistas que ainda não sairiam vitoriosas, de revivescência de antigas e novas heresias. Para a questão que nos interessa, as contradições entre o movimento franciscano mais radical e o papado teriam ainda outros lances que não deixariam de envolver também o poder temporal, já que o Imperador Luís da Baviera tomaria o partido dos franciscanos contestadores. Esta questão, e outros interesses mais complexos envolvendo as antigas contradições entre Império e papado, desembocariam mais adiante no Grande Cisma.
Este será, portanto, o segundo século de existência do franciscanismo: um século XIV que praticamente se abre com as terríveis fomes de 1315 e 1316, com a crise de um mundo superpovoado que já enfrentava seus limites produtivos e que dentro em breve se veria abatido pela Grande Peste de 1348, e que ao mesmo tempo logo estaria abalado pela partilha de uma Igreja Católica ameaçada por cismas papais e sacudida por novas propostas reformistas mescladas a movimentos sociais violentamente sufocados. Neste novo mundo em crise, a imagem de São Francisco parte-se em novas possibilidades. Dos “espirituais” – aquela corrente franciscana que pretendia seguir rigorosamente o exemplo de São Francisco para daí fazer da pobreza um absoluto – não demoraria muito a surgirem movimentos desejosos de realizar na terra a “utopia franciscana”, sob o prisma de uma eclesiologia radicalmente anti-hierárquica (VAUCHEZ, 1995: 133). A condenação destes que foram denominados fraticelli retrata bem este período de tensões sociais de onde partiriam tanto os mais desesperados anseios de libertação como também uma violenta ação repressora que adentra o século XIV dando continuidade ao projeto da Inquisição, definitivamente estabilizado sob a responsabilidade da ordem mendicante dos dominicanos. De igual maneira, ao nível dos estados que começam a consolidar seus mecanismos de centralização, tomam forma na Inglaterra os Estatutos dos trabalhadores e legislações similares na França e outros países, todas destinadas a controlar uma força de trabalho que começa a se insurgir contra condições desfavoráveis ou mesmo insuportáveis de trabalho.
É neste quadro convulsionado que florescem os fraticelli. Rígidos defensores da “pobreza absoluta” que julgavam preservar como a verdadeira herança franciscana, eles costumavam viver em lugares isolados ou em eremitérios, ao mesmo tempo em que continuavam a usar o hábito dos franciscanos e, como estes, a organizarem-se em províncias governadas por um geral. A bula Gloriosam ecclesiam (1318), que condenava os espirituais da Toscana refugiados na Sicília, menciona entre os erros da nova seita a ideia de que existiriam duas igrejas: uma espiritual (a igreja pobre dos fraticelli) e a outra carnal, identificada com a Igreja Romana. Percebe-se aqui a incorporação, mesmo que vaga, de algo do pensamento dualista que lembra as heresias do século anterior. Expelidos para fora do circuito eclesiástico da Santa Sé, os fraticelli começavam a se aproximar de propostas de outros movimentos heréticos e a negar a validade dos sacramentos, uma vez que estes estariam sendo administrados por sacerdotes ilegítimos, autorizados por uma hierarquia que eles não mais reconheciam. Por outro lado, alguns deles também passaram a compartilhar das ideias de Joaquim de Flora sobre o fim do mundo. Sua difusão, sobretudo na Itália, foi particularmente favorecida pelas circunstâncias da época: o exílio dos papas em Avignon e o cisma do Ocidente, a luta das comunas italianas contra a autoridade eclesiástica. Combatidos e perseguidos pela Inquisição, os fraticelli terminariam desaparecendo por volta da metade do século XV.
O franciscanismo, enfim, estabilizar-se-ia como instituição que, de um lado, muitos já não viam como capaz de preservar na sua pureza original os ideais de São Francisco de Assis, e que, de outro lado, havia explorado os seus limites chegando à necessidade de excluir da Ordem aqueles que foram julgados transgressores. Estabilizada, a Ordem Franciscana perderia um pouco da força que nos tempos medievais dela fizera um dos grandes motores da história religiosa.
Referências
Bibliografia
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______ (1995). A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
1 Proposições iniciais
O crescente fortalecimento da história cultural, nos últimos anos, tem contribuído para incrementar um sensível interesse dos medievalistas pelo estudo da escolástica. Este grande movimento que foi certamente a principal contribuição da Idade Média à Filosofia passa aqui a ser visto também como um objeto de estudo importante para iluminar não apenas o universo cultural da Idade Média, mas também a sua economia, as suas relações políticas, as relações sociais, ou mesmo a história da cultura material. Atravessando todo o período de expansão feudal e adentrando o período da crise medieval nos séculos XIV e XV, a escolástica sinaliza com seus próprios desenvolvimentos as transformações histórico-sociais que se operaram nas várias fases da Idade Média e nos vários âmbitos da vida do homem medieval. Frequentemente, e disto os historiadores se apercebem com clareza cada vez maior, os rumos do pensamento escolástico se veem interferidos por questões de ordem econômica, política e social; e, com a mesma frequência, é possível também comprovar, este mesmo pensamento escolástico mostra-se interferente no mundo que o produziu transformando-o, fornecendo-lhe instrumentos para a mudança, ofertando-lhe limites e aberturas que ajudaram a redefinir os caminhos disponíveis para os homens medievais.