Выбрать главу

O presente ensaio buscará trazer para primeiro plano um pouco da reflexão historiográfica que se tem desenvolvido em torno da complexa interação entre a escolástica e a história que a produziu. Neste sentido, começaremos por delimitar com maior clareza os parâmetros temporais dentro dos quais examinaremos o universo escolástico.

Em que pese que algumas sínteses produzidas no âmbito da história da Igreja e da história da Filosofia considerem a escolástica num arco mais amplo, dentro do qual são identificadas várias fases que remontam a períodos mais recuados, estaremos nos referindo aqui – para uma reflexão historiográfica da escolástica que se mostre diretamente relacionada a uma série de aspectos típicos do período feudal – à escolástica que se desenvolve a partir de fins do século XII, que atinge o seu apogeu no século XIII, e que entra em uma fase já transformada a partir de 1270 no contexto do surgimento de novas correntes que já desfiguram o sistema inicial.

Antes de iniciarmos uma pequena revisão historiográfica e uma exposição de fontes primárias importantes para o estudo da escolástica, consideremos alguns elementos essenciais que ajudarão a delimitar melhor o nosso objeto de reflexão. A escolástica guarda antes de qualquer coisa íntimas relações com a universidade: não apenas os grandes pensadores da escolástica serão os mestres das universidades que começam a surgir nas proximidades do século XIII, como a própria estrutura corporativa da universidade, dividida em saberes especializados – a Filosofia, a Medicina, o Direito, a Teologia – corresponde também à maneira como vai se organizando o saber escolástico desde o princípio. Aqui teremos, de fato, um saber especializado, e alguns autores chegam a falar em quatro escolásticas distintas, embora notando que a Filosofia também é tronco comum e necessário para o desenvolvimento das três outras escolásticas, ligadas aos saberes médico, jurista e teológico desta época (ALESSIO, 1992: 170).

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que a escolástica apresenta uma série de características interligadas. Diremos que de um lado mostra-se como uma espécie de saber “autorreferente”, que apresenta uma baixíssima taxa de incorporação de elementos exteriores para além daqueles que desde o princípio foram se constituindo na escolástica em um corpo fechado de “textos canônicos”. A escolástica fundamenta-se, neste particular, no “princípio de autoridade”: será uma ciência do comentário, e por mais magistrais e criativas que sejam as elaborações produzidas por seus mestres, existirá sempre uma série de textos canônicos dos quais os mestres escolásticos deverão extrair toda a exposição de seus pensamentos. Guardemos esta característica, pois ela permite que a escolástica associe-se a um padrão de autossuficiência e fechamento sobre si mesma que também veremos em outros esquemas corporativos e tendências autossuficientes do período.

Os textos canônicos variam conforme as quatro áreas do saber, mas é possível citar aqui um certo fundo comum que todos referenciam. Há de saída uma base aristotélica importante: a Ética e a Lógica (mas ao mesmo tempo em que persiste a interdição de certos textos aristotélicos). Assinala-se a presença de Donato, Porfírio e Prisciano, e obviamente os primeiros Padres da Igreja, com destaque para Santo Agostinho. Por fim, Averróis, médico e comentarista árabe de textos de Aristóteles, é incorporado em outro momento. A partir deste fundo comum, a escolástica vive de uma peculiar combinação de textos herdados da herança latina dos primeiros autores cristãos com um certo substrato de textos derivados do saber greco-romano e, em alguma medida, também dos muçulmanos.

Eis ainda que a própria língua, um latim fossilizado numa formalização que também se fecha sobre si mesma, complementa de maneira bastante cômoda o fato de que a escolástica se apresenta como corpo fechado de saber. A Summa será o seu típico gênero literário, um texto cuidadosamente elaborado, subdividido e monumental por excelência – a ponto de autores como Panofsky estudarem suas relações com o caráter monumental das catedrais que começaram a ser construídas por esta mesma época (PANOFSKY, 1951). O livro, por fim, é o seu instrumento – não mais um livro para ser guardado como tesouro, mas um livro que realmente se destina a circular no âmbito de leitores especializados, e a se tornar efetivamente instrumento de estudo que se presta à leitura e à multiplicação de cópias.

Quanto aos atores sociais que daí emergem, a escolástica é não simplesmente produto da cultura eclesiástica, mas abre-se mais especialmente à confluência de duas novas correntes religiosas que surgem no século XII sob o rótulo de “ordens mendicantes”: os franciscanos e os dominicanos. De seus quadros sairão os mestres da escolástica. Para seus próprios fins, como pregadores que precisam da lógica e da retórica para desenvolver uma eficaz capacidade de convencer através da pregação, os dominicanos utilizarão a escolástica como base essencial de formação.

Desde o princípio, eles são encarregados de combater a heresia, e será uma de suas principais funções a pregação com vistas a recompor um quadro de fiéis que se vê abalado desde o século XII por novas e por vezes ameaçadoras formas de religiosidade; logo adiante se tornarão também os inquisidores oficializados pelo papado. Para pregar e inquirir, a escolástica os instruirá tanto numa forma especial de pensar como de falar, que bem saberão adaptar quando tiverem diante de si o povo mais ignorante ou o herege mais perturbador.

Os franciscanos, por fim, dela também saberão tirar proveito, embora os historiadores já tenham observado que a relação com a escolástica não é tão espontânea com os franciscanos como ocorre com os dominicanos. Enfim, essas duas ordens também produzirão uma divisão inicial – de um lado os escolásticos mais ligados aos dominicanos, mais fortemente influenciados pelo pensamento aristotélico e em alguns casos pelos averroístas; de outro lado, os escolásticos ligados aos franciscanos, mais inspirados em Santo Agostinho, e também por vezes nos neoplatônicos. Ao fazerem suas reflexões serem geradas sobretudo de um movimento intimista produzido pela meditação, os escolásticos franciscanos contrastam de modo geral com os dominicanos, para os quais o movimento inicial do saber procede da abstração.