Por fim, o ponto essencial. O que traz uma verdadeira unidade à escolástica é o seu método: o mestre escolástico deve extrair do texto canônico – que traz à escolástica o princípio de autoridade – a matéria para um problema, e a partir daí desenvolvê-lo em relação a um interlocutor imaginário pronto a lhe opor objeções. A base do método é o desejo de explicitar tudo, esgotando sistematicamente todas as possibilidades. O método escolástico desenvolve-se em torno de alguns pontos essenciais, entre eles a “precisão vocabular” e a “Dialética” – conjunto de operações que fazem do objeto de saber um problema que será exposto e sustentado contra o interlocutor real ou imaginário. Para tal, parte-se da lectio, que é o comentário do texto, e em seguida empreende-se a análise de profundidade que principia com a própria análise gramatical destinada a revelar o sentido literal, para depois se passar à explicação lógica.
Contudo, este comentário gera discussão, de modo que a dialética permite ultrapassar a compreensão do texto para tratar dos problemas que ele suscita. Desta maneira, a lectio desenvolve-se em questio. O momento seguinte ocorre quando a própria questio torna-se objeto de discussão entre mestres e estudantes, gerando a disputatio. Esse método era o mesmo nas quatro escolásticas ligadas aos saberes divididos nas universidades medievais, e por isto pode-se dizer que o método era o grande elemento de unidade da escolástica como um todo.
Situados estes parâmetros iniciais que melhor delimitam nosso objeto de análise, amparemo-nos em algumas referências historiográficas importantes.
2 Discussões historiográficas
A escolástica tem sido estudada por inúmeros historiadores e também por estudiosos de outras áreas. Algumas teses extremamente originais envolvendo as relações da escolástica com outros fenômenos de seu tempo – notadamente no que concerne à escolástica que se mostra em seu pleno apogeu no século XIII – tornaram-se clássicos ou obras polêmicas que até hoje estimulam novas reflexões historiográficas. Um exemplo nos foi dado em 1951 pela brilhante tese de Panofsky sobre as relações entre a Arquitetura gótica e a escolástica, tese por vezes criticada nos tempos mais recentes, mas que nem por isso tem deixado de inspirar novas reflexões historiográficas (PANOFSKY, 1991). O ponto de partida central de Panofsky é o de que existe uma perfeita sincronia entre a escolástica e a arte gótica, tanto no sentido de que são fenômenos coextensivos como no sentido de que suas fases internas coincidem, de modo que as grandes realizações que marcam estas fases poderiam ser objeto de comparação. Assim, a Summa – novo gênero que se mostra como uma das principais realizações do estilo escolástico em seu período de apogeu, corresponderia às grandes inovações da arquitetura gótica. Um exemplo privilegiado seria a Summa Theologie de Alexandre de Hales, que começa a ser elaborada em 1231, precisamente no mesmo ano em que Pierre de Montereau inicia a construção da nova nave de Saint-Denis, certamente um marco da arquitetura gótica do século XIII. Os cinquenta anos posteriores a 1277, ano de grandes questionamentos contra os quais devem se defender os escolásticos e também de novos desdobramentos internos, corresponderiam a uma dissolução do sistema existente, na qual teria havido um declínio na confiança na razão com a consequente substituição da Summa por formas de exposição menos sistemáticas, tudo isto ocorrendo em paralelo a desenvolvimentos similares no tipo de arte gótica que animara as décadas posteriores. As teses de Panofsky, certamente instigantes, mereceram críticas, comentários diversos, e mesmo reinterpretações de suas propostas com vistas a novas possibilidades.
Valendo-se da senda iniciada por Erwin Panofsky, é aliás oportuno lembrar a comparação proposta por Pierre Chaunu entre a obra de Duns Escoto, um escolástico que se projeta a partir da viragem escolástica de 1277, e o novo estilo gótico da mesma época. Observa ele que o gótico perde a sua majestosa simplicidade e começa a se tornar mais pesado, cedendo à virtuosidade. Diante disto Chaunu indaga: não é a tentação da virtuosidade juntamente com a inquietude a principal característica de Duns Escoto? (CHAUNU, 1993: 94). As possibilidades comparativas seguem adiante, e ainda hoje continuam despertando polêmicas vigorosas algumas das hipóteses mais provocativas de Panofsky, como a da possibilidade de comparar a base de desenvolvimento das catedrais góticas ao modus operandi do pensamento escolástico – por exemplo, a disputatio.
Também aparecem no instigante ensaio de Umberto Eco sobre a Arte e beleza na estética medieval algumas proposições acerca de correlações entre as concepções estéticas da Idade Média e a escolástica – notadamente a partir de uma atenta e cuidadosa análise de textos e do discurso produzido por alguns de seus principais expoentes, como Boaventura, Santo Tomás de Aquino, Ockham e Duns Escoto.
À parte estas sempre audaciosas correlações entre a escolástica e outros fenômenos da cultura, têm havido alguns consensos entre os historiadores mais preocupados em atingir correlações amplamente sustentadas pela documentação e fatos bem conhecidos da época. Uma correlação imediata é a da emergência da escolástica e o surgimento das universidades, e esse aspecto é o primeiro a ser relacionado por Franco Alessio em seu ensaio introdutório sobre a escolástica, apresentado como verbete para o Dicionário de História Medieval organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Smith. Enquanto a universidade é o corpo fechado e constituído por mestres, a universidade apresenta-se como o ensino magistral que esta mesma escolástica tem por função proporcionar. Esta sincronicidade é muito bem salientada por Alessio, que faz notar que o humanismo que se afirma a partir do século XV é tão estranho à instituição universitária como radicalmente antiescolástico.
Ao mesmo tempo em que reconhece as comprovadas sincronias observadas por diversos historiadores, Pierre Chaunu, em seu O tempo das reformas (1250-1550), observa em outros momentos também as assincronias ou desenvolvimentos independentes perceptíveis em alguns aspectos da escolástica. A escolástica é vista aqui – e este é um dos méritos deste autor – como um modo de pensamento complexo. Chaunu utiliza aqui o conceito de “estrutura autônoma organizada”, ressaltando que a escolástica apresenta-se essencialmente virada sobre si própria e não imediatamente influenciada pelos planos demográficos, econômicos e sociais. Chaunu chega mesmo a comentar que a escolástica sofre uma profunda modificação no final do século XIII, mas que essa modificação é quase independente do meio (CHAUNU, 1993: 79).