Finalmente, será fundamental citar uma obra bastante específica de Jacques Le Goff – Os intelectuais na Idade Média – onde o historiador francês estabelece as devidas relações entre a escolástica, as universidades, o movimento urbano – bem como uma nova maneira de pensar e agir que clama por novos objetos, como é o caso do livro, que se torna um livro circulante, bem distinto do livro da Alta Idade Média. Importante notar que, neste caso, os próprios livros precisaram ter seu formato transformado: precisaram ser menores, mais manejáveis e transportáveis do que os livros in-fólio de grandes dimensões que eram somente apropriados para as abadias que os conservavam (LE GOFF, 1993: 73).
Sobre a questão do método – que é talvez a mais importante, já que o método é precisamente o que traz uma unidade à escolástica – há também textos que esclarecem o método da escolástica, como Introduction à l’etude de Saint Thomas d’Aquin, do Padre Chenu (1974).
Com relação às fontes primárias, a escolástica desenvolvida nas universidades produz uma rica quantidade de fontes, pois além dos textos canônicos que integravam o programa deveriam ser conservados os cursos dos professores. Também os estudantes deveriam tomar sistematicamente notas deles, e estas relationes, como eram chamadas, foram conservadas em certo número (LE GOFF, 1993: 72). A publicação do texto oficial dos cursos em diversos exemplares também assegura a riqueza de fontes. Por fim, os próprios estatutos das universidades constituem fontes importantes.
3 Novos desenvolvimentos: a escolástica no século XIV
O ano de 1277 representará um marco para a crise da assimilação cristã do aristotelismo, e ao mesmo tempo um ponto de mudança do pensamento escolástico. Já após a morte de Santo Tomás de Aquino, o Bispo Etiene Tempier de Paris começa a denunciar neste ano de 1277 os riscos que existiriam na adoção do pensamento aristotélico para um pensamento cristão que deveria estar alicerçado na revelação. O pretexto é uma querela que opõe a afirmação da infinita liberdade de Deus a um mundo regido por imperativos lógicos, com base no aristotelismo que fora sustentado durante todo o século pela maior parte dos mestres escolásticos. Apoiando-se em um grupo de teólogos, Tempier terminaria por ser bem-sucedido na condenação de 219 erros encontrados nas obras dos mestres de Paris. Isto produziria um sensível abalo no movimento escolástico.
Na verdade, a querela de 1277 desdobra-se de divisões que a própria escolástica já comportava, grosso modo, opondo os mestres mais ligados à Filosofia aos mestres mais ligados à Teologia, estas que eram duas das quatro especialidades presentes desde o início na estrutura da universidade e da escolástica enquanto campo de saber. Ou seja, o confronto remete, de algum modo, a uma desconfiança que se fortalece na Faculdade de Teologia em relação às audácias filosóficas da Faculdade de Artes. Isso vai ficando bastante claro a partir de 1267, quando vinham se acirrando os conflitos entre os filósofos liderados por Siger de Brabante (1240-1284) – contemporâneo de Santo Tomás de Aquino e que agora representava um racionalismo aristotélico mais rigoroso – e os teólogos que se opunham à primazia da exigência filosófica diante da letra da palavra de Deus. O ambiente escolástico estava bem dividido, e São Boaventura – ministro geral da Ordem Franciscana e ele mesmo um dos pensadores mais destacados dos meios universitários – alertava agora com bastante veemência contra os perigos de um novo paganismo baseado nas atitudes “racionalistas e naturalistas” de alguns dos mestres parisienses (VAN STEENBERGHEN, 1951: 305).
Enquanto isso, entre 1269 e 1271, uma ruptura também se estabelecia a partir do confronto entre Santo Tomás de Aquino (1225-1274) – que tentava salvar o aristotelismo por outros caminhos filosóficos distintos do racionalismo de Siger de Brabante – e Jean Peckam, teólogo franciscano que liderava os mestres partidários do neoagostinismo.
Novamente a questão de base era uma discussão que poderia ser resumida com uma indagação: “Deus estava acima da Lógica, ou haveria limites para o próprio Criador do universo, que não poderia criar mundos ilógicos?” Todo este ambiente prepara a querela de 1277, que finalmente penderia a favor dos teólogos mais conservadores. Ao mesmo tempo em que a querela de 1277 resolvia-se desfavoravelmente aos filósofos de maior base aristotélica, João Duns Escoto (1266-1308) – filósofo escocês e franciscano que neste aspecto logo seria seguido por todos os pensadores nominalistas do século XIV – começa a colocar em xeque a fragilidade da construção lógica dos mestres otimistas do século XIII (CHAUNU, 1993: 80). O pensamento escolástico nominalista do século XIV será mais cético, mais pessimista, por vezes mais próximo da revelação cristã. E outras correntes surgirão, tendentes ao misticismo.
Tal como ressalta Etienne Gilson no seu tratado sobre A Filosofia na Idade Média, de modo geral os grandes pensadores do século XIII acreditaram na possibilidade de unir a teologia natural e a teologia revelada, “a primeira concordando com a segunda nos limites de sua própria competência e reconhecendo a sua autoridade em todas as questões relativas a Deus e que ela própria não conseguia resolver” (GILSON, 1958: 638). O grande esforço dos escolastas era determinar um ponto de vista onde todos os dados da fé e todos os conhecimentos racionais pudessem surgir como elementos de um único sistema intelectual (GILSON, 1958: 638). Apesar destes esforços, o desenvolvimento da escolástica no século XIII terminou por não oferecer uma única resposta ao problema, mas várias, de São Boaventura a Santo Tomás de Aquino ou Alberto Magno, passando pela alternativa averroísta que concluía que era insolúvel o problema da conciliação entre a filosofia natural e a teologia revelada. Os confrontos de 1277 expressam os sintomas desta crise, e preparam as alternativas que emergirão no século XIV, em particular a crítica teológica da filosofia, ou ainda, como, ressalta Etienne Gilson, também da Filosofia a certas instâncias da Teologia. Misticismo e humanismo serão alternativas que se abrirão no espaço desta crise.
Duns Escoto já pertence ao século XIV pelo menos relativamente a dois aspectos importantes: o seu retraimento cético e a escalada na abstração (CHAUNU, 1993: 93). De fato, o seu ceticismo moderado não lhe interdita a possibilidade de reconstituir um sistema partindo do mais abstrato. Por outro lado, movimentando-se em uma motivação claramente religiosa, embora sem defender uma posição anti-intelectualista, Duns Escoto começa por se demarcar do racionalismo dos grandes sistemas que, na escolástica do século XIII, confiavam à demonstração os dados fundamentais da dogmática cristã (CHAUNU, 1993: 95). Sem rejeitar a capacidade de conhecimento de Aristóteles ou Averróis, Escoto sustenta que este conhecimento não é suficiente para assegurar a salvação (GILSON, 1951).
É assim que, em Opus Oxoniense, o primeiro dos dois comentários de Duns Escoto sobre o Livro das sentenças, registra a sua orientação em relação à polêmica questão da suficiência ou insuficiência da razão naturaclass="underline" “Será necessário inspirar ao homem, de forma natural, no estado em que se encontra, uma doutrina de tal forma especial que ele não poderia atingir pela luz natural do intelecto”.