Com relação à crucial questão que já havia sido colocada em 1277 como ponto de ruptura e mudança da escolástica – a questão sobre a liberdade de Deus ou sua sujeição a um universo lógico que não poderia ser transposto nem mesmo pelo Criador – Duns Escoto insistirá enfaticamente na liberdade radical da ação de Deus. Em contraste com os grandes sistemas de pensamento da escolástica realista do século XIII, o pensamento de Duns Escoto é impregnado de irrealismo místico, sob o ângulo da inserção no sensível e no quotidiano (CHAUNU, 1993: 99).
Mas, por fim, ele já está perfeitamente inserido nos novos tempos, com o matiz de uma “angústia quase existencial”, para retomar as palavras de Pierre Chaunu. Sua principal contribuição para o ambiente religioso e filosófico que se seguiria é proclamar “a liberdade total de Deus e a irredutível particularidade do ser humano, como reflexo livre da vontade de Deus” (CHAUNU, 1993: 101).
Guilherme de Ockham (1290-1349) – franciscano que inicia seus estudos em Oxford – representará a segunda força inicial redefinidora do pensamento escolástico no século XIV. Na verdade, tal como observa Chaunu, ele “só penetra no interior do aristotelismo para melhor o desmantelar” (CHAUNU, 1993: 103). O nominalismo que será introduzido por Ockham no pensamento escolástico, na verdade destruindo-o ou desmantelando-o, traduz de certo modo a consciência de um fracasso do antigo pensamento escolástico diante de um novo mundo para o qual já não fornece as respostas. O novo mundo, sob o peso daquilo que Chaunu verá como uma crise de um mundo superpovoado diante de espaços que se fecharam, anseia por novas soluções bem distintas da tentativa de racionalidade aristotélica mesclada à teologia que se pode construir a partir de um corpo canônico e fechado de textos. Novas respostas estarão no misticismo, na nova devoção, na atitude mais pastoral diante da vida. O nominalismo será uma das expressões deste novo tempo.
O nominalismo desenvolve extraordinariamente o instrumento lógico precisamente para mostrar a impossibilidade de basear o dogma na filosofia. Dito de outra forma, trata-se de rejeitar expressamente a possibilidade de submeter a essência divina às análises especulativas na razão natural, o que faz do ockhamismo uma vanguarda de outras correntes que lhe seguiriam na crítica ao racionalismo escolástico, entre elas o misticismo e o próprio humanismo. Levando a sua rejeição da escolástica mais racionalista às últimas consequências, a alternativa proposta por Ockham acentua a separação iniciada entre filosofia e teologia. Desautorizando as imensas cadeias de articulações racionais, Ockham apenas reconhece como válido um único tipo de demonstração: uma proposta só está demonstrada se ela é imediatamente evidente, ou se ela se deduz necessariamente de uma outra proposição evidente. O conhecimento intuitivo, desta maneira, afirma-se perante o conhecimento alicerçado na experiência.
Um exemplo da proposta antirracionalista de Ockham está na sua resposta à antiga questão escolástica da onipotência divina e da “possibilidade de criação de mundos não lógicos por Deus”. Nesta questão, Ockham e os nominalistas tomam partido, a posteriori, de Tempier, para quem nada poderia limitar a onipotência divina. Opondo-se simultaneamente ao Deus de Averróis, considerado como puro intelecto, e ao Deus de Avicena, cuja vontade segue necessariamente o seu intelecto, Ockham rejeita a proposição do necessitarismo greco-árabe afirmando que, se Deus o tivesse desejado, não há nada que não pudesse ser de outra forma (CHAUNU, 1993: 107). Afirma-se aqui uma contingência radical, que consiste em encarar os problemas do ponto de vista do poder absoluto de Deus.
O sucesso da via aberta por Ockham deve ser compreendido no contexto de sua época. Assim, “a sucessão de catástrofes cada vez mais graves e próximas, até o cataclismo de 1438-1439, que faz desaparecer de 35 a 40% dos homens da Cristandade latina, a criação de novas estruturas, contribuem para edificar um mundo imprevisível, realmente contingente. Qualquer sistemática que pretenda ligar o universo a uma estrutura necessária, portanto previsível, parece, depois da Peste Negra, desprovida de sentido” (CHAUNU, 1993: 108). O nominalismo iniciado por Ockham, bem como o humanismo e a via mística por caminhos totalmente diferentes, desencorajam neste novo contexto uma contemplação otimista do mundo e, tal como observa Pierre Chaunu, incita a uma procura para além do presente (CHAUNU, 1993: 111). A escolástica, não correspondendo mais aos anseios da maior parte dos homens de seu tempo, e tampouco às condições objetivas trazidas pelos novos tempos, abria finalmente espaço para novas formas de pensamento, algumas delas surgindo de seus próprios desenvolvimentos. Mas aqui, certamente, já nos avizinhamos de outro capítulo da história cultural.
Referências
ALESSIO, F. (2002). “Escolástica”. In: LE GOFF, J. & SMITH, J.-C. (orgs.). Dicionário de História Medieval. Vol. I. São Paulo: Edusc.
CHAUNU, P. (1993). “As correntes de pensamento”. O tempo das reformas – A crise da Cristandade. Lisboa: Ed. 70, [originaclass="underline" 1975).
CHENU, M.-D. (1974). Introduction à l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris/Montreau: Institut d’Études Médiévales.
GILSON, E. (1958). La Philosophie au Moyen Age. Paris: Payot.
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LE GOFF, J. (1993). Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense.
PANOFSKY, E. (1991). Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Martins Fontes [originaclass="underline" 1951].
VAN STEENBERGHEN, F. (1951). “Le mouvement doctrinal du Xle au XIVe siècle”. In: FLICHE & MATIN (orgs.). Histoire générale de l’Eglise. T. VIII. Paris: Bloud & Gay, p. 355ss.
VERGER, J. (1999). Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc [originaclass="underline" Paris: PUF, 1997].
Anexos
Como se deu a passagem da Antiguidade Romana para o mundo medieval? Quais as hipóteses dos historiadores sobre a transição de um período ao outro, e qual o papel do cristianismo e da Igreja Católica nas novas sociedades que emergiram no Ocidente Europeu depois da fragmentação do antigo mundo romano? A história medieval da Igreja e da religiosidade certamente é marcada por tensões e conflitos diversos, não apenas entre a Igreja e os poderes constituídos, como também entre a Igreja oficial e as novas formas de religiosidade que começaram a se firmar nesse período. Esse entremeado de relações é o objeto dos seis ensaios reunidos neste livro. Do surgimento das heresias e das ordens menores às relações entre papado e Império, ou à constituição de um imaginário específico no qual a religião desempenha um papel particularmente importante, o livro Papas, imperadores e hereges na Idade Média procura examinar os diversos atores envolvidos nesta complexa história que fornece uma das raízes das sociedades europeias e americanas do mundo moderno.