De todo modo, o fato é que, com a emergência de uma atenção historiográfica voltada para as mais diversas dimensões da vida humana, permite-se cada vez mais que sejam vistos como períodos dotados de suas próprias singularidades tanto o período do Baixo Império Romano – examinado não mais como um período de decadência – como o período que se situa entre a extinção política do Império Romano do Ocidente e a expansão islâmica no século VIII. As contribuições são inúmeras, e vão desde as leituras atentas às práticas culturais elaboradas por André Chastagnol – um autor que, além de uma leitura mais totalizante como a desenvolvida em O Senado Romano à Época Imperial (CHASTAGNOL, 1992), procurou examinar questões culturais mais específicas como a das festas imperiais (CHASTAGNOL, 1984: 91-107; 1987: 491-507) – até as análises atentas às representações culturais e às práticas discursivas desenvolvidas por Averil Cameron, conforme seus estudos sobre A Cristandade e a retórica do império (CAMERON, 1992)[11]. Do mesmo modo, a atenção à complexidade dos fenômenos culturais, às práticas e representações, aos discursos e sua recepção tem encontrado contribuições fundamentais nos diversos autores preocupados em trazer para primeiro plano uma história cultural da última fase do Império Romano, e este é também o caso de Ramsay MacMullen, que examina desde os movimentos mais gerais relacionados à cristianização do Império (MacMULLEN, 1984)[12] até aspectos mais específicos como a utilização das dimensões lúdica e simbólica pelos imperadores romanos no seu relacionamento com a plebe urbana (MacMULLEN, 1992), a oposição contrastiva entre o soldado romano e o civil (MacMULLEN, 1963), ou a recepção discursiva do texto religioso (MacMULLEN, 1989). Mas vamos nos ater a uma obra que também já se tornou um clássico em termo de reflexão e redefinição de temporalidades com relação à última fase histórica da Antiguidade Romana.
Atentando para uma importante questão associada à psicologia social, o historiador irlandês Peter Brown constrói sua explicação para o fim do mundo antigo (BROWN, 1971) – destacando neste caso o período do Baixo Império entre os séculos III e IV – a partir de uma análise que ressalta enfaticamente, como acontecimentos mais relevantes, a “cristianização do Ocidente” e a transformação político-militar a partir dos exércitos romanos das províncias (240 d.C.). Para o primeiro fator – um aspecto ligado a transformações psicológicas presentes na sociedade – Brown destaca o pronunciamento no homem comum da necessidade de um deus intimista. Esta mesma necessidade, que ampara na sociedade mais ampla a cristianização do mundo antigo, daria origem também ao monacato, que posteriormente viria a se desenvolver como uma importante alternativa característica da religiosidade medieval[13].
Sugerindo uma periodização diferenciada, Henri Marrou (1980) propõe-se a examinar o período que envolve a passagem da Antiguidade à Medievalidade considerando questões também ligadas à psicologia e à cultura, mostrando-se particularmente atento aos desenvolvimentos estéticos como sinais importantes para a compreensão das singularidades de um período no qual – além das transformações – as permanências não devem ser esquecidas como importantes elos que conduzem a história. A sua organização cronológica delineia um período entre os séculos III e VI, para o qual a fusão da cultura pagã com os valores cristãos adquire um destaque particularmente significativo, ao lado da afirmação de novas concepções religiosas e estéticas. Ao mesmo tempo, ao encaminhar uma análise que considera as inovações, mas também está atenta para as permanências, Marrou é um historiador importante no que se refere à utilização de um novo conceito na periodização da história da civilização ocidentaclass="underline" o de “Antiguidade Tardia” – conceito na verdade proveniente da historiografia alemã das décadas de 1910 e 1920, mas que é aqui retomado com especial expressividade[14].
Outros autores reinvestiriam neste conceito, permitindo-se variar os limites inicial e final deste período que passaria a ser reivindicado como território historiográfico tanto pelos historiadores da Antiguidade como pelos historiadores da Idade Média.
As ideias de nomear este período limítrofe como “Antiguidade Tardia” ou “Idade Média Primitiva” caminham juntas, ambas com direito a legitimidade no universo das possibilidades historiográficas. Conforme se olhe para o período com vistas à compreensão dos desenvolvimentos terminais da Antiguidade, ou com vistas à compreensão dos novos processos que mais tarde se consolidariam como tipicamente medievais, teríamos uma possibilidade ou outra. O “período limítrofe”, aqui considerado, pode se apresentar como “disputa de território” entre historiadores da Antiguidade e da Idade Média, mas também pode se apresentar como espaço de diálogo, como lugar onde antiquistas e medievalistas se encontram para intercambiar suas ideias e experiências.
De todo modo, a tendência da historiografia a partir do século XX, conforme se vê, foi a de permitir múltiplas leituras do fenômeno da passagem da Antiguidade à Medievalidade – aliás considerando criticamente os limites espaciais e historiográficos destas expressões. De qualquer modo, a multiplicação de leituras deste período limítrofe entre o que se convencionou chamar de duas eras bem diferenciadas mostra-se interferida por uma profusão de novas perspectivas que, na historiografia contemporânea, introduzem uma miríade de novos campos históricos, como a história social, a história econômica, a história cultural, a história das mentalidades, a história demográfica, bem como novas abordagens definidas por campos históricos que vão da história serial à micro-história. Esse enriquecimento de novas perspectivas, aliado à ideia de que a história desenvolve-se através de uma polifonia de temporalidades, tem permitido aos historiadores contemporâneos perceberem cada vez mais claramente que não podem existir periodizações fixas e inflexíveis, já que os diversos problemas a serem examinados é que definem cada qual a sua periodização.
12
O texto, além de uma visão mais ampla sobre a cristianização do Império, é igualmente rico no que se refere ao exame das relações complexas entre pagãos e cristãos.
13
Ainda considerando a produção historiográfica de Peter Brown, é oportuno lembrar que a discussão sobre a passagem prossegue neste autor por novas obras. Depois de(1989), irá discutir questões mais transversais envolvidas pelo mesmo contexto histórico, como(1992), uma obra que se insere perfeitamente no intercurso da história cultural com uma nova história política, e que se dedica a discutir os mecanismos de imposição e circulação do poder para além da autoridade institucional. Na mesma linha de reflexão, simultaneamente cultural e política, virá uma de suas mais recentes obras:(2002). Por outro lado, a preocupação mais específica com o cristianismo aparece em(1995) e em(1996). Por fim, em 2000 irá escrever sua biografia sobre(2007), sendo oportuno notar que Santo Agostinho é um personagem histórico bem característico da zona de transição entre a Antiguidade e a Medievalidade.
14
Conforme ressalta P. Martin, este conceito procede do vocábulo alemão. Para uma discussão sobre esta questão e sobre o conceito de “Antiguidade Tardia”, cf. Martin (1976).