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Novas leituras: história e complexidade

Vale ainda lembrar que – no contexto dos cada vez mais estreitos diálogos interdisciplinares que se vão desenvolvendo na historiografia contemporânea – aportes diversos no âmbito teórico também têm permitido reequacionar a passagem da Antiguidade à Medievalidade como fenômeno extremamente complexo. A ideia de que teria ocorrido uma ruína ou desagregação do Império Romano em todos os seus níveis de organização, e não apenas no âmbito político, com a consequente reorganização de elementos para a constituição de um novo sistema, tem sido proposta também por historiadores que buscam amparar suas análises na teoria da complexidade. Aborda-se, aqui, a possibilidade de considerar o Império Romano como um “sistema adaptativo complexo”, que entra em crise quando seus diversos componentes estruturais já não respondem com precisão e na mesma proporção ao princípio agregador do sistema[15]. A ideia de “desagregação” confronta-se aqui aos conceitos ou ideias mais antigas como “declínio”, “queda”, “decadência”. Sobre a operacionalização da teoria dos sistemas complexos adaptativos ao colapso romano, pode-se citar, ao nível da historiografia brasileira, a excelente obra de Norma Musco Mendes que examina o sistema político do Império Romano do Ocidente sob a perspectiva de um modelo de colapso (MENDES, 2002). O modelo teórico dos “sistemas adaptativos complexos” tem sido empregado mais recentemente como uma nova possibilidade de análise, e vale a pena refletir sobre o mesmo.

Um sistema adaptativo complexo deve ser entendido como um sistema formado por um grande número de subsistemas, elementos, agentes individuais, além de estar sujeito a inúmeras linhas de força, notando-se que o sistema converge para um certo padrão de comportamento (um atractor)[16]. A noção de “sistema adaptativo complexo”, nestes casos, tem levado os historiadores a dialogarem com um antigo conceito já bem conhecido e operacionalizado pela historiografia moderna – o de “sistema” –, mas mais particularmente com a ideia atual de um sistema que vai se formando naturalmente, por ajustamentos entre seus vários elementos, progredindo em sua tendência a auto-organizar-se, favorecendo a agregação de elementos já existentes e a invenção de outros, adaptando-os a uma dinâmica própria e constituindo-os como um conjunto equilibrado, até o momento em que tudo começa a se desagregar novamente.

A auto-organização permite que a ordem possa emergir do caos, ao qual se voltará posteriormente. Conforme esta perspectiva, boa parte dos sistemas tende a se constituir de forma complexa para, posteriormente, se desintegrarem, de modo que a aplicação deste campo nocional à compreensão dos últimos períodos da história da Antiguidade Romana permitiria evocar aqui a noção de “desagregação”, mais do que as de “declínio”, “queda” ou “decadência”. A desagregação do Império Romano do Ocidente – uma vez que no Oriente Bizantino a experiência imperial seguiria mais adiante com novos elementos e com novos padrões de interação e relacionamento entre estes elementos – corresponderia à desestruturação de um certo padrão (complexo) de comportamento que pode ser identificado como característico do sistema de civilização típico do Império Romano. Esse padrão de comportamento específico e particular para o qual converge cada um dos mais diversos sistemas, e que é certamente singular para cada um destes mesmos sistemas, corresponde àquilo que alguns teóricos da complexidade chamam de atractor (STACEY, 1996: 54), uma espécie de “ordem” que se apresenta como dimensão de convergência do sistema e lhe assegura o funcionamento de uma determinada maneira, e, se for o caso, um crescimento equilibrado.

No caso do sistema sócio-político-econômico-cultural que aqui estaremos chamando simplificadamente de Império Romano, diversos elementos teriam concorrido para a manutenção da ordem e o funcionamento do sistema, integrando os diversos subsistemas e elementos em uma ordem maior, em equilíbrio dinâmico que atinge a sua expressão máxima no período da pax romana, simbolicamente o momento em que o poder do Império é inconteste, ou que assim se coloca para aqueles que o vivenciam dentro e fora dos limites do mesmo.

O exército, naturalmente, desempenhava um papel fundamental na manutenção da ordem, no fortalecimento dos mecanismos de identidade, na salvaguarda dos limites político-geográficos do Império, na construção de unidade política com a qual todos os cidadãos romanos podiam se identificar e nela se verem incluídos. Outros elementos mais diversos, da divisão de trabalho ao sistema de educação, compunham o sistema, de maneira integrada. A história da última fase do Império Romano, de acordo com uma perspectiva amparada na complexidade, é a história desta “desagregação”, não necessariamente sob o signo de “decadência” ou “declínio” – embora estas noções não sejam necessariamente incompatíveis com possíveis interpretações que trabalhem com a noção de “sistema adaptativo complexo” –, mas em todo o caso a história de uma rearrumação, de uma desestruturação da ordem que envolve diversos fatores.

É bastante interessante notar que um dos sintomas da desagregação, em um sistema complexo deste tipo, está precisamente na necessidade de se estabelecer vários controles sobre os diversos elementos e subsistemas que, na situação de equilíbrio natural, tenderiam a se articular e a interagir sem a necessidade de excessivas medidas de força, para além dos limites habituais assumidos pelas medidas de força nos momentos de equilíbrio.

Em uma palavra, em um sistema como o do Império Romano, um sintoma relevante do período de desagregação está precisamente na afirmação da necessidade de várias medidas extraordinárias de força, de modo a impor uma coesão que não estava ocorrendo mais entre diversos elementos que deveriam estar articulados para assegurar a unidade do Império. Historicamente, o século III representa um momento emblemático em que a desorganização começa a se fazer notar nos âmbitos econômico, político e militar, evocando a necessidade de medidas de força para tentar assegurar uma coesão que começava a ser ameaçada por distúrbios diversos, em um nível de ocorrência para além do que há muito já fazia parte do previsível no sistema político-social vigente. Afora os conflitos sociais diversos, bem como os distúrbios ocasionados pela crise do escravismo, o crescente confronto entre o poder do imperador e o senado constitui parte dos sinais e desdobramentos da desorganização do sistema. A partilha do poder imperial, prenunciando a divisão do Império em duas unidades políticas onde o título imperial passará a ser hereditário, constituirá outro desdobramento, acompanhado pelo crescente poder absoluto dos imperadores – signo maior das medidas de forças autoritárias e controladoras que precisam ser agora impostas em favor da coesão do sistema.

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15

Sobre a possibilidade de examinar o Império Romano em sua fase terminal como sistema complexo que se desagrega, cf. Garcia (2006). Para um posicionamento conceitual acerca da Teoria da Complexidade, cf. Stacey (1996).

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16

Para exemplificar, podemos considerar uma revoada de pássaros como um sistema adaptativo complexo no qual, de modo a não se chocarem uns com os outros nos seus voos individuais, o conjunto de pássaros termina por constituir uma formação ordenada.