Este pátio é cheio de casos, uns verdadeiros, outros falsos. De todo jeito, a gente vai ouvindo, com isso o tempo passa.
Quando vou à privada, no pátio ou na cela, é preciso que Dega me acompanhe, por causa dos canudos. Ele fica na minha frente, enquanto faço o serviço, e me dá cobertura contra olhares muito abelhudos. Um canudo já é toda uma história, mas eu estou com dois, porque Galgani está cada dia mais doente. E aí há um mistério: o canudo que introduzo por último é sempre o último que sai, enquanto o que foi introduzido antes sai sempre primeiro. Como eles viravam na minha barriga, não sei, mas era assim.
Ontem, no barbeiro, tentaram assassinar Clousiot, enquanto fazia a barba. Duas facadas perto do coração. Não morreu por milagre. Soube do caso por um dos seus amigos. É uma história curiosa, que contarei um dia. Esse assassinato era um ajuste de contas. O autor da tentativa fracassada morreu seis anos mais tarde, em Caiena, engolindo bicromato de potássio num prato de lentilhas. Morreu com dores pavorosas. O enfermeiro, que ajudou o médico na autópsia, trouxe um pedaço de tripa de uns 10 centímetros. Tinha dezessete buracos. Dois meses mais tarde, seu assassino era encontrado estrangulado na sua cama de doente. Nunca se soube por quem.
Agora, já são onze dias que estamos em Saint-Martin-de-Ré. A fortaleza está superlotada. Dia e noite, as sentinelas dão guarda no caminho de ronda.
Uma briga explodiu no banheiro, entre dois irmãos. Brigaram como cães e um deles é colocado dentro de nossa cela. Chama-se André Baillard. Ele me diz que não pode ser punido, porque a culpa é da administração: os guardas têm ordem de não deixar que os dois irmãos se encontrem, sob pretexto algum. Quando a gente fica sabendo do caso deles, a coisa se esclarece.
André tinha assassinado uma mulher que vivia de rendas e o irmão dele, Émile, escondia o dinheiro roubado. Émile caiu por causa de um roubo e pegou três anos. Um dia, no calabouço com outros punidos, furioso contra seu irmão, que não lhe mandava dinheiro para comprar cigarros, soltou a língua e disse que André ia ver: porque foi André, explicou ele, quem matou a velha, ao passo que ele, Émile, escondeu o dinheiro. Também, quando saísse, não lhe daria nada. Um preso se apressou em ir contar o que ouvira ao diretor da prisão. A coisa não ficou nisso. André é detido e os dois irmãos são condenados à morte. No quarteirão dos condenados à morte, na Santé, os dois têm celas vizinhas. Cada um deles apresenta um recurso de graça. O de Émile é aceito no 43.° dia, mas o de André é recusado. Entretanto, por medida de humanidade para com André, Émile é mantido no quarteirão dos condenados à morte e os dois irmãos fazem, todos os dias, seu passeio, um em seguida ao outro, com as correntes nos pés.
No 46.° dia, a porta de André vai ser aberta às 4 horas e meia. Já estão todos ali: o diretor, o escrivão, o promotor que pediu a cabeça dele. É a execução. Mas, no momento em que o diretor se adianta para falar, seu advogado chega correndo, seguido de uma outra pessoa, que entrega um papel ao procurador. Todo mundo se retira para o corredor. A garganta de André fica tão apertada, que ele não consegue engolir a saliva. Não é possível, nunca, interromper uma execução encaminhada. Mas e o que acontece. Foi só no dia seguinte, depois de horas de angústia e de interrogação, que ele soube por seu advogado que, na véspera de sua execução, o Presidente Doumer foi assassinado por Gorguloff. Mas Doumer não morreu na hora. Toda a noite, o advogado ficou de guarda diante da clínica, após ter informado à Guarda dos Selos que, se o presidente morresse antes da hora da execução (das 4 horas e meia às 5), ele solicitaria o adiamento da execução, por vacância do cargo de chefe do Executivo. Doumer morreu às 4 horas e 2 minutos. Foi o tempo de prevenir a Chancelaria, tomar um táxi seguido pelo portador da ordem de suspensão e chegar em três minutos, para impedir que se abrisse a porta da cela de André. A pena dos dois irmãos foi comutada para prisão perpétua com trabalhos forçados. De fato, no dia da eleição do novo presidente, o advogado foi a Versalhes e, assim que Albert Lebrun foi eleito, o advogado lhe apresentou seu pedido de graça. Jamais um presidente recusou o primeiro pedido de graça que lhe solicitam: “Lebrun assinou”, conclui André, “e cá estou, meu chapa, vivinho e bem arranjado, a caminho da Guiana”. Olho para este salvado da guilhotina e digo para mim mesmo que tudo o que sofri não pode ser comparado ao calvário que ele sofreu.
No entanto, nunca fiz amizade com o cara. Saber que matou uma pobre velhinha para roubar me dá nojo. Ele, aliás, terá sempre sorte. Mais tarde, na Ilha de Saint-Joseph, assassinará seu irmão. O fato foi visto por vários forçados. Émile pescava com linha, em pé sobre um rochedo, só pensando em sua pescaria. O ruído das ondas, muito forte, amortecia qualquer outro ruído. André se aproximou do irmão por trás, com um grosso bambu de 3 metros de comprimento na mão, e, com um único empurrão nas costas, fez que ele perdesse o equilíbrio. O lugar estava infestado de tubarões e Émile não demorou em ser o prato do dia deles. Ausente na chamada da noite, foi dado como desaparecido durante uma tentativa de evasão. Não se falou mais no assunto. Somente quatro ou cinco forçados, que empilhavam cocos no alto da ilha, assistiram à cena. Está claro, todo mundo ficou sabendo, com exceção dos guardas. André nunca foi incomodado.
Foi desinternado por “boa conduta” e, em Saint-Laurent-du-Maroni, gozava de um regime de favor. Tinha uma pequena cela só para ele. Um dia, tendo um caso com outro forçado, convidou este, perversamente, para entrar em sua cela e o matou com uma facada no coração. Reconhecido que agiu em legítima defesa, foi absolvido. Por ocasião do término do degredo, sempre por motivo da sua “boa conduta”, foi agraciado.
Saint-Martin-de-Ré está repleta de prisioneiros. Duas categorias bem diferentes: oitocentos ou mil forçados e novecentos desterrados. Para ser forçado é preciso ter feito alguma coisa grave ou, no mínimo, ter sido acusado de um crime sério. A pena mais fraca é sete anos de trabalhos forçados, o restante indo, por escalas, até a prisão perpétua. Com os desterrados, o caso é diferente. Três a sete condenações e um homem pode ser desterrado. É verdade que são todos ladrões incorrigíveis e se compreende que a sociedade tem o dever de se defender. No entanto, é vergonhoso que um povo civilizado tenha a pena acessória do desterro. Há pequenos gatunos, desastrados, já que são presos com freqüência, que são desterrados – o que, no meu tempo, dava no mesmo que ser condenado à prisão perpétua -, e, em toda a sua vida, não roubaram nem 10 000 francos. Nisso está o maior absurdo da civilização francesa. Um povo não tem o direito de se vingar, nem de eliminar de modo tão sumário as pessoas que dão aborrecimentos à sociedade. Essas pessoas merecem mais ser curadas do que punidas de modo tão desumano.
Há dezessete dias que estamos em Saint-Martin-de-Ré. Já sabemos o nome do barco que nos levará ao degredo, é o La Martinière. Vai transportar 1870 condenados. Os oitocentos ou novecentos forçados são reunidos nesta manhã, no pátio da fortaleza. Desde há uma hora, aproximadamente, estamos em pé em fileira de dez, enchendo o retângulo do pátio. Uma porta se abre e vemos aparecerem homens vestidos de jeito diferente do dos guardas, que conhecemos. Trazem uma roupa de corte militar azul-celeste e estão bem vestidos. É uma roupa diferente da de um policial e também da de um soldado. Todos trazem um cinturão do qual pende um coldre de revólver. São quase uns oitenta. Alguns usam galões. Todos têm a pele queimada de sol, são de todas as idades, de 35 aos cinqüenta. Os velhos são mais simpáticos do que os jovens, que enchem o peito com um ar importante. O estado-maior destes homens vem acompanhado pelo diretor de Saint-Martin-de-Ré, por um coronel de polícia, por três ou quatro médicos em roupa colonial e por dois padres de batinas brancas. O coronel de polícia toma um megafone nas mãos e o leva à boca. Ficamos à espera de uma ordem de “posição de sentido!” e não vem nada disso. Ele grita: