E foi embora com os outros guardas.
Ufa! Livramos por pouco. Ao fechar a porta, Filissari me sai com esta:
– Você teve sorte que eu seja napoleonista!
Em menos de uma hora, quase todos os homens do nosso bloco já entraram. Faltam dezoito: os guardas percebem que, na sua precipitação, os fecharam em outros blocos. Quando eles se juntam a nós, ficamos sabendo o que aconteceu, pois estes homens estavam no serviço. Um ladrão me conta baixinho:
“Imagine, Papi, que a gente tinha puxado uma pedra de quase 1 tonelada durante 400 metros mais ou menos. O caminho onde içamos as pedras não tem trechos muito íngremes e chegamos até um poço a mais ou menos 50 metros da casa do comandante. Este poço sempre serviu de parada. Está à sombra dos coqueiros e na metade do caminho que a gente tem que fazer. Então, paramos, como de costume, puxamos um grande balde de água fresca e bebemos. Alguns molharam o lenço para botar na cabeça. Como a parada é de uns dez minutos, o guarda também se sentou na beirada do poço. Ele tirou o capacete e estava enxugando a testa e a cabeça com um grande lenço, quando Arnaud se aproximou por trás com uma enxada na mão sem levantá-la, assim ninguém podia gritar para avisar o guarda. Levantar a enxada e abater o gume bem no meio da cabeça do guarda foi um movimento que durou só um segundo. Com a cabeça aberta em dois, o guarda se esticou sem um grito. Assim que ele caiu, Hautin. que estava naturalmente colocado na frente dele, apanhou o fuzil e Marceau lhe tirou o cinturão com o revólver. De revólver na mão, Marceau se voltou para a turma toda e disse: “É uma revolta. Quem estiver com a gente, que nos siga”. Nenhum dos serventes se mexeu, nem gritou, e nenhum dos homens da turma de serviço manifestou a intenção de segui-los. Arnaud nos olhou a todos – prossegue o cara – e nos diz: “Corja de covardes, vamos mostrar para vocês o que é ser homem!” Arnaud tomou o fuzil das mãos de Hautin e os dois correram na direção da casa do comandante. Marceau ficou aí, um pouco afastado. Ele tinha na mão o revólver grande e dava ordens: “Não se mexam, não falem, não gritem. Vocês, árabes sujos, deitem de cara no chão”. De lá onde estava, vi tudo o que aconteceu.
“Quando Arnaud estava subindo a escada para entrar na casa do comandante, o árabe que trabalha lá, nesse momento preciso, abriu a porta com duas crianças, com uma no colo e dando a mão à outra. Os dois ficaram espantados, o árabe com a guria no colo deu um pontapé em Arnaud. Este quis matar o árabe, mas o cara se defendeu botando a criança na frente dele. Ninguém gritou. Nem o árabe, nem os outros. Quatro ou cinco vezes, o fuzil foi dirigido de ângulos diversos contra o árabe. Toda vez, ele botava a guria na frente do cano. Sem subir a escada, Hautin segurou a bainha das calças do árabe. Ele estava para cair e, aí, de uma vez só, jogou a guria contra o fuzil de Arnaud. Desequilibrando-se na escada, Arnaud, a guria e o árabe, que Hautin puxava pela perna, caíram embolados. Aí surgiram os primeiros gritos, no início das crianças, depois do árabe, seguidos pelos insultos de Arnaud e Hautin. O árabe pegou no chão, mais rápido do que eles, a arma que tinha caído, mas segurou-a com a mão esquerda e apenas pelo cano. Hautin pegou novamente a perna dele nas mãos. Arnaud lhe segurou o braço direito e lhe deu uma chave de braço. O árabe jogou o fuzil a mais de 10 metros.
“No momento em que os três se precipitavam para apanhá-lo, houve o primeiro tiro, foi um guarda do serviço de folhas secas. O comandante apareceu pela janela e começou a dar tiros, um em cima do outro, mas, com medo de ferir o árabe, atirou no lugar onde estava o fuzil. Hautin e Arnaud fugiram na direção do campo pela estrada à beira-mar, perseguidos pelos tiros. Hautin, com sua perna dura, corria mais devagar e foi abatido antes de chegar ao mar. Arnaud entrou na água, você sabe, entre a piscina em construção e a dos guardas. Lá está sempre cheio de tubarões. Arnaud foi cercado pelos tiros, já que um outro guarda veio ajudar o comandante e o guarda das folhas secas. Arnaud estava atrás de uma grande pedra.
“- Se entregue – gritaram os guardas – e nós poupamos a sua vida!
“- Nunca – respondeu Arnaud -, prefiro servir de bóia para os tubarões, assim nunca mais verei suas caras de fodidos.
“E entrou no mar, direto no lugar dos tubarões. Acho que ele levou um tiro, porque, num determinado momento, parou. Apesar disso, os guardas continuaram a atirar. Ele continuou caminhando, sem nadar. O peito dele ainda não tinha afundado todo na água, quando os tubarões atacaram. Vimos muito bem quando ele deu um soco num tubarão que, metade fora da água, se jogou sobre ele. Depois, foi totalmente esquartejado pelos tubarões, que puxavam por todos os lados, sem cortar os braços nem as pernas. Em menos de cinco minutos, tinha desaparecido.
“Os guardas deram pelo menos cem tiros de fuzil na massa constituída por Arnaud e os tubarões. Só morreu um tubarão, cujo corpo chegou na praia de barriga para cima. Como tinham chegado guardas por todos os lados, Marceau pensou em salvar a pele jogando a arma no poço, mas os árabes se levantaram e, com pauladas, com pontapés e com os próprios punhos, o empurraram na direção dos guardas, dizendo que ele estava metido no golpe. Embora estivesse cheio de sangue e com as mãos para cima, os guardas o mataram com tiros de revólver e fuzil e, para acabar com ele, um guarda lhe esmagou a cabeça com uma coronhada de carabina usada como tacape.
“Todos os guardas descarregaram os revólveres sobre Hautin. Cada um tinha 36 tiros; morto ou vivo, ele levou quase 150 tiros. Os sujeitos que foram mortos por Filissari são homens que os árabes denunciaram como se tivessem tentado, no início, seguir Arnaud e que depois desistiram por medo. Mentira pura, porque, se tinha cúmplices, ninguém se mexeu.”
Já faz dois dias que estamos todos trancados nas salas correspondentes a cada categoria. Ninguém sai para trabalhar. Na porta, as sentinelas se revezam a cada duas horas. Proibido falar de um bloco para o outro. Proibido aproximar-se das janelas. É da passagem formada pelas duas fileiras de redes que, ficando um pouco recuado, pela porta gradeada, um preso pode ver o pátio. Como reforços, chegaram guardas de Royale. Nenhum preso sai. Os árabes também estão controlados. Todo mundo está trancado. De vez em quando, sem grito, sem brutalidade, vê-se passar um homem pelado que, seguido por um guarda, se dirige para as solitárias. Pelas janelas laterais, os guardas olham com freqüência para dentro da sala. Na porta, uma à direita, uma à esquerda, ficam as duas sentinelas. A duração do plantão é curta, duas horas, mas não se sentam nunca, nem botam a arma a tiracolo: a carabina fica encostada no braço, pronto para atirar.
Resolvemos jogar pôquer em pequenos grupos de cinco. Nada de marselhesa, nem de jogos com muita gente, são muito barulhentos. Marquetti, que tocava uma sonata de Beethoven no violino, foi obrigado a parar.
– Pára com esta música. Nós, guardas, estamos de luto.
Uma tensão pouco comum paira não só na choça, mas no campo inteiro. Nada de café. Nada de sopa. Uma bola de pão pela manhã, corned-beef ao meio-dia, corned-beef à noite, uma lata para cada quatro homens. Como aqui não destruíram nada, temos café e algum alimento: manteiga, óleo, farinha, etc. As outras choças não têm mais nada. Quando a fumaça do fogo para fazer café saiu das privadas, um guarda mandou apagar o fogo. Era um velho de Marselha, velho duro, chamado Niston, que estava fazendo café para vender. Teve o peito de responder ao guarda:
– Se você quiser que se apague o fogo, venha apagá-lo você mesmo.
Então, o guarda atirou várias vezes pela janela. Café e fogo foram rapidamente destroçados.
Niston recebeu uma bala na perna. Tamanha é a tensão, que a gente pensou que eles começavam a nos fuzilar e nos jogamos todos de bruços no chão.
O chefe do posto de guarda, neste momento, ainda é Filissari. Ele corre feito louco, acompanhado por seus quatro guardas. O guarda que atirou explica o que aconteceu, é um tipo de Auvergne. Filissari o insulta em corso, e o outro, que não entende bulhufas, não sabe o que responder: