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Discussões muito graves se travam entre os clãs. Uns são a favor de Pétain, os outros estão com De Gaulle. No fundo, não se sabe nada porque não temos, como já disse, nenhum rádio, nem com os guardas, nem com os prisioneiros. As notícias chegam pelos barcos que passam e trazem um pouco de farinha, de legumes secos e de arroz. Para nós, a guerra, vista de tão longe, é difícil de entender.

Teria chegado a Saint-Laurent-du-Maroni, parece, um aliciador das forças livres. Nos trabalhos forçados, não se sabe de nada, a não ser que os alemães ocuparam a França toda.

Um incidente divertido: chegou um padre em Royale e fez um sermão depois da missa. Disse:

– Se as ilhas forem atacadas, vocês receberão armas para ajudar os guardas a defender a terra da França.

É autêntico. Engraçado, esse padre, e só podia pensar muito mal da gente! Pedir aos prisioneiros para defender sua cela! Só faltava essa, nos trabalhos forçados!

A guerra, para nós, se traduz no seguinte: dobrado o efetivo de guardas, desde o simples vigilante ao comandante e guarda-chefe; muitos fiscais, alguns com um sotaque alemão ou alsaciano muito forte; muito pouco pão: recebemos quatrocentos gramas; muito pouca carne.

Enfim, a única coisa que aumentou é o preço da fuga fracassada: condenado à morte e executado. Pois, na acusação, acrescentam: “Tentou passar para as fileiras dos inimigos da França”.

Estou em Royale já faz quase quatro meses. Tornei-me amicíssimo do médico Germain Guibert. Sua esposa, uma senhora excepcional, me pediu que lhe fizesse uma horta para ajudá-la a viver com esse regime de cinto apertado. Fiz uma horta com alfaces, rabanetes, vagens, tomates e berinjelas. Ela está encantada e me trata como um bom amigo.

Esse médico nunca apertou a mão de um guarda, de qualquer patente, mas freqüentemente apertou a minha ou a de alguns forçados que ele soube conhecer e estimar.

Depois de devolvido à liberdade, entrei novamente em contato com o Dr. Germain Guibert, por intermédio do Dr. Rosenberg. Ele me enviou uma fotografia dele e de sua esposa na Canebière, em Marselha. Estava de volta de Marrocos e me dava os parabéns por me saber livre e feliz. Morreu na Indochina, ao tentar salvar um ferido que tinha ficado para trás. Era um indivíduo excepcional e sua mulher era digna dele. Quando fui à França, em 1967, tive vontade de visitá-la. Mas desisti, porque ela tinha deixado de me escrever, depois que eu lhe pedi um atestado em meu favor, o que ela fez, aliás. Mas, depois, nunca mais deu sinal de vida. Não sei a causa desse silêncio, mas guardo na minha alma, para os dois, a mais alta gratidão pelo modo como me trataram no seu lar em Royale.

Depois de alguns meses, consegui voltar para Royale.

9 SAINT-JOSEPH

MORTE DE CARBONIERI

Ontem, meu amigo Matthieu Carbonieri levou uma facada em pleno coração. Este assassinato vai desencadear uma série de outros. Ele estava no banheiro, se lavando, e foi com o rosto cheio de sabão que levou essa facada, Quando a gente toma banho, tem o hábito de abrir a faca e deixá-la sob as roupas, a fim de ter tempo de pegá-la se alguém que a gente pensa ser inimigo se aproxima subitamente. Não ter feito isso foi um erro que custou a vida dele. Quem matou meu amigo foi um armênio, um tipo perigoso.

Com a autorização do comandante, ajudado por um outro, desci meu amigo até o cais. Ele é pesado e, descendo o costão, tive que descansar três vezes. Fiz com que lhe amarrassem uma grande pedra aos pés e, em lugar de corda, um fio de ferro. Assim, os tubarões não poderão cortá-lo e ele afundará no mar sem ser devorado por eles.

O sino toca e chegamos ao cais. São 6 horas da tarde. O sol se deita no horizonte. Entramos no bote. No famoso caixão, que serve para todo mundo, abaixada a tampa, Matthieu dorme para sempre Acabou-se para ele.

– Para a frente! Empurrem aí! – grita o guarda à turma.

Em menos de dez minutos, chegamos à corrente formada pelo canal entre Royale e Saint-Joseph. E então, de repente, minha garganta se aperta. Dezenas de barbatanas de tubarões saem da água, girando velozmente num espaço restrito de menos de 400 metros. Aí estão os come-condenados, chegaram ao encontro na hora, no lugar exato.

Que o bom Deus faça com que não tenham tempo de apanhar meu amigo. Os remos são erguidos, em sinal de adeus. Suspendemos a caixa. Enrolado nos sacos de farinha, o corpo de Matthieu escorrega, puxado pelo peso da grande pedra, e rapidamente toca o mar.

Horror! Assim que entrou na água e eu penso que desapareceu, ele torna a subir, erguido no ar por, não sei, sete, dez ou vinte tubarões – quem pode saber? Antes que o bote se afaste, os sacos de farinha que o envolvem são arrancados e então acontece uma coisa inexplicável. Matthieu aparece, cerca de dois ou três segundos, de pé em cima da água. O antebraço direito já foi amputado. Com metade do corpo fora da água, ele avança direto para o bote; depois, no meio de um torvelinho mais forte, desaparece para sempre. Os tubarões passaram sob nosso bote, esbarrando no fundo. Um homem perde o equilíbrio e quase cai na água.

Todo mundo está petrificado, inclusive os guardas. Pela primeira vez, eu tive vontade de morrer. Faltou pouco para que eu me atirasse aos tubarões, a fim de desaparecer para sempre deste inferno.

Lentamente, subo do cais ao barracão. Ninguém me acompanha. Pus a padiola no ombro e chego à planície onde meu búfalo Brutus atacou Danton. Paro e me sento. A noite caiu, são apenas 7 horas da tarde. A oeste, o céu é um pouco iluminado por algumas línguas do sol, que desapareceu no horizonte. O resto é negro, furado por instantes pelo pincel do farol da ilha; tenho o coração pesado.

Merda! Você queria ver um enterro e, ainda por cima, o enterro do seu amigo, não queria? Pois bem, viu e bem visto! Com sino e tudo o mais! Está satisfeito? Sua curiosidade doentia foi satisfeita.

Só falta abotoar o cara que matou seu amigo. Quando? Esta noite. Por que esta noite? É muito cedo, o cara vai estar mais alerta do que nunca. São dez na curriola dele. Não posso me afobar e ter pressa demais nesse golpe. Vejamos, com quantos homens posso contar? Quatro, mais eu: cinco. Está bem. Liquidar o cara. Sim, e, se possível, vou tratar de me mandar. Dessa vez, nada de jangada, de preparação, nada; dois sacos de cocos e me enfio pelo mar. A distância até a costa é relativamente curta, 40 quilômetros em linha reta. Com as ondas, os ventos e as marés, isso deve se transformar em 120 quilômetros. É só uma questão de resistência. Sou forte e devo poder agüentar dois dias no mar, montado a cavalo nos sacos.

Pego a padiola e subo para o barracão. Quando chego à porta, revistam-me, coisa extraordinária. Isso nunca acontece. O guarda em pessoa tira-me a faca.

– Querem que me matem? Por que me desarmam? Sabem que me mandam para a morte, fazendo isso? Se me matarem, a culpa será de vocês.

Ninguém responde, nem os guardas, nem os carcereiros árabes. Abrem a porta e eu entro na sala.

– Não se enxerga nada aqui, por que uma lâmpada só em lugar de três?

– Papi, venha por aqui – Grandet me puxa pela manga.

A sala não está muito ruidosa. Sente-se que alguma coisa grave vai acontecer ou já aconteceu.

– Não tenho mais minha mudinha (faca). Tiraram-me na revista.

– Não vai precisar dela esta noite.

– Por quê?

– O armênio e seu amigo estão na privada.

– Que estão fazendo lá embaixo?

– Estão mortos.

– Quem esfriou eles?

– Eu.

– Andou depressa. E os outros?

– Restam quatro na curriola deles. Paulo me deu sua palavra de homem que não iam se mexer e que esperariam para saber se você está de acordo em parar a coisa por aí.

– Dê-me uma faca.

– Tome, pegue a minha. Fico neste canto. Vá falar com eles.