Avanço para a curriola deles. Agora, meus olhos se acostumaram à pouca luz. Enfim, consigo distinguir o grupo. De fato, os quatro estão de pé diante de suas redes, colados uns aos outros.
– Paulo, você quer falar comigo?
– Sim.
– Só, ou na frente dos seus amigos? Que é que você quer? Deixo, prudentemente, 1 metro e 50 entre mim e eles. Minha faca está aberta dentro da manga esquerda e o cabo está bem colado na palma da minha mão.
– Eu queria lhe dizer que acho que o seu amigo foi suficientemente vingado. Você perdeu seu melhor amigo, nós perdemos dois. Na minha opinião, isso devia parar por aí. Que acha?
– Paulo, tomo nota da sua oferta. O que podemos fazer, se você estiver de acordo, é que as duas curriolas se comprometam a não fazer nada durante oito dias. Enquanto isso, veremos o que se deve fazer. De acordo?
– Está bem.
Afasto-me.
– Então, que foi que eles disseram?
– Que acham que Matthieu, com a morte do armênio e de Sans-Souci, foi suficientemente vingado.
– Não foi, não – diz Galgani.
Grandet não diz nada. Jean Castelli e Louis Gravon estão de acordo em fazer um pacto de paz.
– E você, Papi?
– Primeiro, é preciso lembrar quem matou Matthieu? Foi o armênio. Bem. Propus um acordo. Dei minha palavra a eles, e eles toparam, que durante oito dias ninguém vai fazer nada.
– Não quer vingar Matthieu? – Diz Galgani.
– Velho, Matthieu já foi vingado, dois morreram por ele. Por que matar os outros?
– Pelo menos eles sabiam? Isso é que precisamos descobrir.
– Boa noite a todos, desculpem-me. Vou dormir, se puder. Tenho necessidade de ficar sozinho e me deito em minha rede.
Sinto uma mão que desliza por mim e retira suavemente a faca. Uma voz cochicha docemente na noite:
– Durma se puder, Papi, durma tranqüilo. Nós, de qualquer jeito, cada um por sua vez, vamos ficar de guarda.
A morte de meu amigo, tão brutal, repugnante, aconteceu sem motivo sério. O armênio matou-o porque, à noite, no jogo, ele o obrigara a pagar uma aposta de 170 francos. Aquele corno se sentiu diminuído porque foi obrigado a tomar uma atitude diante de trinta ou quarenta jogadores. Com receio de ser atacado dos dois lados por Matthieu e Grandet, não pudera deixar de obedecer.
Covardemente, matou um homem que era o tipo do aventureiro limpo e direito em seu meio. Esse golpe me atingiu fortemente e não tive senão uma satisfação, a de que os assassinos não viveram mais do que algumas horas depois de seu crime. É bem pequena.
Grandet, como um tigre, com a rapidez digna de um campeão de florete, cortou-lhes o pescoço, antes que tivessem tempo de se pôr em guarda. Imagino: o lugar onde caíram deve estar inundado de sangue. Penso, bestamente: “Tenho vontade de perguntar quem os atirou na privada”. Mas não quero falar. Com as pálpebras fechadas, vejo o sol tragicamente vermelho e violeta, clareando com seus últimos raios esta cena dantesca: os tubarões disputando meu amigo… E aquele tronco de pé, já com o antebraço amputado, avançando para o bote!… Então, é verdade que o sino chama os tubarões e que aqueles sujos sabem que vão lhes servir a bóia quando o sino toca… Vejo ainda aquelas dezenas de barbatanas, lúgubres reflexos prateados, passar como submarinos, girando em círculo… Realmente, eram mais de cem… Para Matthieu, para o meu amigo, acabou-se: o caminho da podridão fez seu trabalho até o fim.
Morto com uma facada, por uma bagatela, aos quarenta anos! Pobre amigo. Eu, por mim, não posso mais. Não. Não. Não. Quero que os tubarões me digiram, mas vivo, arriscando-me pela liberdade, sem sacos de farinha, sem pedra, sem cordas. Sem espectadores, nem forçados, nem guardas. Sem sino. Se tenho que virar bóia, pois bem… vão me apanhar vivo, lutando contra os elementos para chegar a alcançar a Terra Grande.
Acabou-se, bem acabado. Nada de fuga muito bem montada. A Ilha do Diabo, dois sacos de cocos e deixar tudo, seja como for, nas mãos de Deus.
Afinal, não vai passar de uma questão de resistência física. Quarenta e oito ou sessenta horas? Será que um tempo tão longo de imersão na água do mar, e mais o esforço dos músculos das coxas, contraídos sobre os sacos de cocos, não vão em certo momento paralisar minhas pernas? Se tenho a chance de ir à Ilha do Diabo, farei as tentativas. Primeiro sair de Royale e ir à Ilha do Diabo. Depois verei.
– Você está dormindo, Papi?
– Não.
– Quer um pouco de café?
– Se você quiser trazer…
Sento-me sobre a rede, aceitando o quarto de café quente que Grandet me estende com um cigarro aceso.
– Que horas são?
– Uma hora da manhã. Entrei de guarda à meia-noite, mas, como vi que você não parava de se mexer, achei que não estava dormindo.
– Tem razão. A morte de Matthieu me transtornou, mas seu enterro com os tubarões me afetou ainda mais. Aquilo foi horrível, sabe?
– Não me diga nada, Papi, suponho o que possa ter sido. Você não devia ter ido.
– Pensava que a estória do sino era conversa. Depois, com um fio de ferro segurando a grande pedra, eu jamais teria acreditado que os tubarões iam ter tempo de apanhá-lo na queda. Pobre Matthieu, vou continuar a ver aquela horrível cena pelo resto da minha vida. E você, como fez para eliminar tão depressa o armênio e Sans-Souci?
– Eu estava na ponta da ilha, colocando uma porta de ferro no açougue, quando soube que ele tinha matado o nosso amigo. Era meio-dia. Em lugar de subir para o barracão, fui para a oficina com a desculpa de consertar a fechadura. Pude encaixar um punhal, afiado dos dois lados, num tubo de 1 metro. O cabo do punhal era oco e o tubo também. Entrei no barracão, às 5 horas, com o tubo na mão. O guarda me perguntou que era aquilo, respondi que a travessa de madeira de minha cama quebrara e que eu ia utilizar aquele tubo naquela noite. Ainda era dia quando entrei na sala, mas havia deixado o tubo no lavatório. Antes da chamada, tornei a pegá-lo. A noite começava a cair. Rodeado por nossos amigos, encaixei rapidamente o punhal no tubo. O armênio e Sans-Souci estavam de pé em seus lugares, diante de suas redes, Paulo um pouco para trás. Você sabe, Jean Castelli e Louis Gravon são muito valentes, mas são velhos e falta-lhes agilidade para lutar num tumulto bem organizado.
– Eu queria agir antes que você chegasse, para evitar que se metesse naquilo. Com seus antecedentes, se fôssemos apanhados, você ia pegar o máximo. Jean foi ao fundo da sala e apagou um dos lampiões; Gravon, do outro lado, fez a mesma coisa. A sala estava quase sem luz, só com um lampião no meio. Eu tinha uma grande lanterna de bolso, que Dega me deu. Jean saiu na frente, eu atrás. Quando chegou perto deles, ergueu o braço e acendeu a lanterna. O armênio, ofuscado, levou o braço esquerdo aos olhos, eu tive tempo de atravessar-lhe o pescoço com minha lança. Sans-Souci, também ofuscado, atirou a faca para a frente, sem saber bem para onde, no vazio. Dei-lhe um golpe tão forte com minha lança, que o transpassei de lado a lado. Paulo se atirou de barriga no chão e rolou para baixo das redes. Como Jean apagara a lanterna, desisti de perseguir Paulo sob as redes, foi o que o salvou.
– E quem os arrastou para a privada?
– Não sei. Acho que foram os rapazes da curriola deles mesmo, para evitar maiores encrencas.
– Mas devia haver um mar de sangue desgraçado…
– Isso mesmo. Completamente degolados, devem ter-se esvaziado de toda a resina. O golpe da lanterna me ocorreu enquanto eu preparava a minha lança. Um guarda, na oficina, estava trocando as pilhas da dele. Isso me deu a idéia e logo falei com Dega para que me arranjasse uma. Eles podem fazer uma revista em regra. A lanterna já saiu daqui e foi devolvida a Dega por um carcereiro árabe, o punhal também. Portanto, nada de bomba por esse lado. Nada tenho a me reprovar. Eles mataram nosso amigo com os olhos cheios de sabão, eu os matei com os olhos cheios de luz. Estamos quites. Que acha, Papi?