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– Não se fala mais.

À noite, às 6 horas, o sino toca. Não me posso impedir, ao escutá-lo, de rever a cena da véspera, e meu amigo com metade do corpo erguido, vindo para o bote. A imagem é tão impressionante, mesmo 24 horas depois, que não desejo, nem por um segundo, que o armênio e Sans-Souci sejam levados pela horda dos tubarões.

Galgani não diz uma palavra. Ele sabe o que aconteceu com Carbonieri. Olha para o nada, balançando as pernas que pendem à direita e à esquerda de sua rede. Grandet ainda não voltou. 0 dobre de finados terminara bem há uns dez minutos quando Galgani sem me olhar, sempre balançando as pernas, diz à meia voz:

– Espero que nenhum pedaço daquele armênio sujo seja comido por um dos tubarões que engoliram Matthieu. Seria péssimo se eles, separados em vida, fossem se encontrar na barriga de um tubarão.

Vai ser realmente um vazio para mim a perda desse amigo nobre e sincero. É melhor que eu vá embora de Royale e aja o mais depressa possível. Todos os dias me repito isto.

UMA FUGA DOS LOUCOS

– Como estamos em guerra e as punições foram reforçadas em caso de evasão falhada, não é o momento de arriscar uma fuga, não é, Salvidia?

O italiano do plano do ouro do comboio e eu discutimos no banho, depois de termos lido o cartaz que nos comunica as novas disposições em caso de evasão. Eu lhe digo:

– Mas não é porque isso nos arrisca a sermos condenados à morte que vai me impedir de partir. E você?

– Eu, Papillon, não agüento mais e vou fugir. Aconteça o que acontecer. Pedi para trabalhar no asilo de loucos como enfermeiro. Sei que na despensa do asilo há dois tonéis de 225 litros, o suficiente para fazer uma jangada. Um está cheio de óleo de oliva, o outro de vinagre. Bem ligados um ao outro, de modo a não poderem se separar em caso algum, parece que assim haveria uma boa chance de alcançar a Terra Grande. Não há vigilância por trás do muro que rodeia o pavilhão dos loucos. Lá dentro há apenas a vigilância permanente de um guarda-enfermeiro, ajudado por duros, sobre os que se fazem de doentes. Quer ir comigo lá para cima?

– Como enfermeiro?

– Impossível, Papillon. Você sabe que nunca lhe darão um emprego no asilo. Sua localização afastada no barracão, sua pouca vigilância, tudo faz com que não mandem você para lá. Mas poderia ir para lá como louco.

– Isso é muito difícil, Salvidia. Quando um doutor classifica você de biruta, está lhe dando praticamente o direito de fazer qualquer coisa que queira. De fato, você é reconhecido como irresponsável por seus atos. Percebe a responsabilidade que um médico assume quando admite isso e assina o diagnóstico? Você pode matar um duro, até mesmo um guarda ou a mulher de um guarda, ou um filho. Você pode fugir, cometer não importa qual delito, a Justiça não tem mais nenhum recurso contra você. O máximo que poderiam lhe fazer é enfiá-lo em uma cela acolchoada, em pêlo, com a camisa-de-força. Esse regime não pode durar mais do que um certo tempo, um dia eles têm que suavizar o tratamento. Resultado: por não importa qual ação muito grave, inclusive fuga, você não paga coisa alguma.

– Papillon, tenho confiança em você, gostaria de fugir com você. Faça o possível para ir ficar junto comigo, como louco. Como enfermeiro, eu poderia ajudá-lo a preparar o golpe o melhor possível e aliviá-lo nos momentos mais duros. Reconheço que deve ser terrível encontrar-se, não estando doente, no meio daqueles seres tão perigosos.

– Vá para. o asilo, Romeo, eu vou estudar o caso a fundo, vou procurar me informar sobre os primeiros sintomas de loucura, para conseguir convencer o médico. Não é má idéia fazer com que o médico me considere irresponsável.

Começo a estudar seriamente a coisa. Não há nenhum livro sobre o assunto na biblioteca da prisão. Cada vez que posso, discuto com homens que foram doentes durante um tempo mais ou menos longo. Consigo, aos poucos, obter uma idéia bastante clara:

1.° Todos os loucos têm dores atrozes no cérebro;

2.° Freqüentemente têm zumbido nas orelhas;

3.° Como são muito nervosos, não podem ficar muito tempo deitados na mesma posição sem serem sacudidos por uma verdadeira descarga de nervos que os acorda e os faz sobressaltarem-se, com o corpo todo tenso a ponto de quebrar.

Portanto, é preciso fazer com que descubram esses sintomas sem os indicar diretamente. Minha loucura deve ser justamente o bastante perigosa para obrigar o doutor a tomar a decisão de me mandar para o asilo, mas não violenta a ponto de justificar os maus-tratos dos vigilantes: camisa-de-força, surras, supressão de alimento, injeção de brometo, banho frio ou quente demais, etc. Se eu representar bem o papel, devo conseguir embrulhar o médico.

Há uma coisa em meu favor: por que, qual seria a razão para eu me tornar um simulador? Se o médico não encontrar qualquer explicação lógica para esta pergunta, é provável que eu possa ganhar a partida. Não há outra solução para mim. Recusaram-se a me mandar para a Ilha do Diabo. Não posso mais suportar o barracão depois do assassinato de meu amigo Matthieu. Para o inferno as hesitações! Está decidido. Segunda-feira vou à consulta. Não. Não devo eu mesmo me apresentar como doente. É melhor que um outro faça isso e que esse outro esteja de boa-fé. Tenho que fazer uma ou duas cenas anormais na saia. Então, o chefe da choça vai falar com o guarda e ele próprio marcará minha consulta.

Há três dias que não durmo, não me lavo e não me barbeio. Masturbo-me várias vezes por noite e como muito pouco. Ontem, perguntei ao meu vizinho por que tirou de meu lugar uma fotografia que jamais existiu. Ele jurou por todos os deuses que não havia tocado em minhas coisas. Inquieto, mudou de lugar. Quase sempre, a comida fica numa tina alguns minutos antes de ser distribuída. Acabo de me aproximar da tina e, na frente de todo mundo, mijei lá dentro. A coisa esfriou o ambiente, mas minha cara deve ter impressionado todo mundo, ninguém murmurou uma palavra, só meu amigo Grandet me disse:

– Papillon, por que fez isso?

– Porque esqueceram de pôr sal – e sem prestar atenção em mais ninguém fui buscar minha tigela e estendi-a para o chefe da choça, para que me servisse.

Num silêncio total, todo mundo me olhou comer minha sopa.

Esses dois incidentes bastaram para que nesta manhã eu me encontre diante do médico, sem ter pedido.

– Então, vai ou não vai, doutor? – repito minha pergunta.

O médico, estupefato, me olha. Eu o encaro com olhos deliberadamente muito naturais.

– Vai, sim – diz o médico. – E você, está doente?

– Não.

– Então, por que veio para consulta?

– Por nada. Disseram-me que o senhor estava doente. É um prazer ver que isso não é verdade. Até logo.

– Espere um pouco, Papillon. Sente-se aí, na minha frente. Olhe para mim.

E o médico me examina os olhos com uma lanterna que emite um pequeno feixe de luz.

– Você não viu nada, médico. Que esperava descobrir? Sua luz não é bastante forte, mas assim mesmo acho que você compreendeu, não é? Diga-me, você viu eles?

– O que? – diz o médico.

– Não banque o trouxa, porra! Você é doutor ou veterinário? Não vá me dizer que não teve tempo de vê-los antes que se escondessem, ou me toma por um idiota completo.

Tenho os olhos brilhantes de fadiga. Meu aspecto, nem barbeado, nem lavado, pesa a meu favor. Os guardas escutam, assombrados, mas não faço nenhum gesto violento que possa justificar sua intervenção. Conciliando e entrando no meu jogo para não me excitar, o médico se levanta e põe a mão no meu ombro. Continuo sentado.

– Sim, eu não queria lhe dizer, Papillon, mas tive tempo de vê-los.

– Está mentindo, médico. (Mantenho o sangue-frio.) Porque você não viu nada, absolutamente! O que eu pensei que você estivesse procurando são os três pontinhos pretos que tenho no olho esquerdo. Só consigo vê-los quando olho para o vazio ou quando leio. Quando pego um espelho, vejo nitidamente meu olho, mas nem sinal dos três pontos. Eles se escondem mal eu pego o espelho para vê-los.