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De pé, rosto ao vento, encarando aquelas vagas monstruosas que acabavam de destruir tudo, ergo meu punho e insulto os céus: “Sujos, porcos, nojentos, pederastas, vocês não têm vergonha de se encarniçar assim contra mim. Pervertidos, sujos, filhos da puta”. E não chega. Continuo contra Deus: “Um bom Deus, você? Nunca mais pronunciarei o seu nome! Você não merece!”

O vento abaixa e essa calma aparente me faz bem e me traz de volta à realidade.

Vou tornar a subir para o asilo e, se puder, vou entrar de novo na enfermaria. Com um pouco de sorte, vai ser possível.

Subo o costão com uma única idéia: entrar e tornar a me deitar em meu colchão. Nem visto, nem reconhecido. Sem aborrecimentos, chego ao corredor da enfermaria. Saltei o muro do asilo, pois não sei onde Salvidia pôs a chave da porta principal.

Sem procurar muito, encontro a chave da enfermaria. Entro e fecho a porta atrás de mim, com duas voltas. Vou à janela e jogo a chave bem longe, ela cai do outro lado do muro. E eu me deito. A única coisa que poderia me denunciar é minha cueca molhada. Tiro-a e vou torcê-la na privada. Com a colcha cobrindo-me o rosto, vou me esquentando aos poucos. O vento e a água do mar me puseram gelado. Será que meu amigo se afogou, realmente? Talvez tenha sido carregado para mais longe do que eu e conseguido se agarrar na ponta da ilha. Será que não voltei depressa demais? Devia ter esperado mais um pouco. Reprovo-me por ter admitido muito depressa que meu companheiro estava perdido.

Na gaveta da mesinha de cabeceira há dois comprimidos para dormir. Engulo-os sem água. Minha saliva basta para fazê-los descer.

Estou dormindo quando, sacudido, vejo o guarda-enfermeiro diante de mim. A sala está cheia de sol e a janela aberta. Três doentes olham lá de fora.

– Então, Papillon? Você dorme como uma pedra. São 10 horas da manhã. Ainda não tomou seu café? Está frio. Olhe, beba.

Mal desperto, percebo que, no que concerne a mim, parece que não há nada de anormal.

– Por que me acordou?

– Porque, como suas queimaduras já sararam, precisamos da cama. Você vai voltar para a cela.

– Está bem, chefe.

E eu o sigo. Ao passar pelo pátio, ele me deixa lá. Aproveito para secar minha cueca ao sol.

Há três dias que a fuga fracassou. Não se falou nada. Vou de minha cela para o pátio, do pátio para minha cela. Salvidia não apareceu mais, portanto ele morreu, coitado, certamente arrebentado contra os rochedos. Eu mesmo escapei de boa e seguramente me salvei porque estava atrás ao invés de estar na frente. Como saber? É preciso que eu saia do asilo. Vai ser difícil fazer com que acreditem que estou curado ou, pelo menos, apto a voltar ao barracão; vai ser mais difícil do que foi vir para o asilo. Agora preciso convencer o doutor de que estou melhor.

– Sr. Rouviot (é o enfermeiro-chefe), sinto frio à noite. Prometo não sujar minhas roupas. Por que não me dá uma calça e uma camisa, por favor?

O guarda está estupefato. Olha-me, muito espantado, depois me diz:

– Sente-se aqui comigo, Papillon. Conte-me, que há?

– Estou surpreendido, chefe, de me encontrar aqui. É o asilo; portanto, estou entre os loucos? Será que, por acaso, perdi o rumo? Por que estou aqui? Diga-me, chefe, por gentileza.

– Meu velho Papillon, você esteve doente, vejo que está com ar de estar melhor. Quer trabalhar?

– Sim.

– Que quer fazer? – Qualquer coisa.

E eis-me vestido, ajudo a limpar as celas. Nesta noite deixaram minha porta aberta até as 9 horas e foi somente quando o guarda da noite começou seu turno que me fecharam.

Um cara de Auvergne, condenado-enfermeiro, falou comigo pela primeira vez ontem à noite. Estávamos a sós no posto de guarda. O guarda ainda não havia chegado. Eu não conhecia esse cara, mas ele me conhecia bem, e disse:

– Não vale a pena continuar a luta, meu chapa.

– Que quer dizer?

– Deixe disso! Pensa que não manjei a sua jogada? Sou enfermeiro de birutas há sete anos e desde a primeira semana percebi que você era um simulador.

– Então, e daí?

– Daí, lamento sinceramente que tenha fracassado em sua fuga com Salvidia. Para ele, isso custou a vida. Sinceramente, tenho pena, porque era um bom amigo, apesar de ele não ter me dito nada, mas não o quero mal por isso. Se precisar de alguma coisa, é só me dizer, ficarei contente em lhe ser útil.

Seus olhos têm um olhar tão franco, que não duvido de sua retidão. E, se não ouvi ninguém falar bem dele, também não ouvi falar mal; portanto, deve ser um bom rapaz.

Pobre Salvidia! Deve ter havido um barulhão quando perceberam que ele sumiu. Encontraram os pedaços dos tonéis devolvidos pelo mar. Têm certeza que ele foi devorado pelos tubarões. O médico fez um barulho dos diabos por causa do óleo jogado fora. Diz que, com a guerra, não é fácil de se conseguir óleo.

– Que me aconselha a fazer?

– Vou fazer com que nomeiem você para o grupo que sai do asilo todos os dias para ir buscar víveres no hospital. Será um passeio. Comece a se comportar bem. E, em dez conversas, mantenha oito dentro do bom senso. Nunca se deve sarar muito depressa.

– Obrigado. Como é seu nome?

– Dupont.

– Obrigado. Não vou esquecer seus bons conselhos.

Faz quase um mês que tentei a fuga. Seis dias depois encontraram o corpo do meu companheiro flutuando. Por um acaso inexplicável, os tubarões não o comeram. Mas outros peixes devoraram, parece, suas entranhas e uma parte da perna, segundo me conta Dupont. Seu crânio estava quebrado. Devido ao adiantado grau de decomposição, não fizeram autópsia. Pergunto a Dupont se há possibilidade de eu mandar uma carta. Seria preciso fazê-la chegar às mãos de Galgani, para que a enfie dentro do saco do correio na hora de selá-lo.

Escrevo para a mãe de Romeo Salvidia, na Itália:

“Minha senhora, seu filho morreu sem ferros nos pés. Morreu no mar, corajosamente. Morreu livre, lutando valentemente para conquistar sua liberdade. Prometemo-nos mutuamente escrever às nossas famílias se alguma desgraça acontecesse a um de nós. Cumpro este doloroso dever, beijando-lhe filialmente as mãos.

Um amigo de seu filho,

Papillon”.

Depois de cumprido o meu dever, decido não pensar mais nesse pesadelo. É a vida. Resta sair do asilo, chegar à Ilha do Diabo, custe o que custar, e tentar outra fuga.

O guarda nomeou-me jardineiro de seu jardim. Há dois meses que me comporto bem e fiz com que ele me apreciasse de tal maneira, que o viado do guarda não quer me largar mais. O cara de Auvergne disse que, em sua última visita, o médico queria me fazer sair do asilo para me por no barracão em “saída de experiência”. O guarda se opôs, dizendo que seu jardim jamais estivera tão bem cuidado.

Então, hoje de manhã, arranquei todos os morangueiros e joguei-os no lixo. No lugar de cada morangueiro, plantei uma pequena cruz. Tantos morangueiros, tantas cruzes. Contar o escândalo não vale a pena. O gordo e pesado guarda-chefe quase estourou, tão grande foi sua indignação. Ele babava e bufava, querendo falar, mas os sons não queriam sair. Finalmente, sentado num carrinho de mão, ele chorou lágrimas verdadeiras. Fui um tanto pesado, mas o que fazer?

O médico não levou a coisa para o lado trágico. Esse doente, insiste, deve ser posto em “saída de experiência” e ir para o barracão, a fim de se readaptar à vida normal. Foi de estar sozinho no jardim que lhe veio essa idéia bizarra.

– Diga-me, Papillon, por que arrancou os morangueiros e pôs cruzes no lugar?

– Não posso explicar essa ação, doutor, e peço desculpas ao vigilante. Ele gostava tanto dos morangueiros, que estou realmente desolado. Vou pedir ao bom Deus que lhe dê outros.

Eis-me no barracão. Reencontro meus amigos. O lugar de Carbonieri está vazio, ponho minha rede ao lado desse espaço vazio, como se Matthieu continuasse lá.

O doutor me fez bordar em meu blusão: “Em tratamento especial”. Ninguém, a não ser o médico, pode me dar ordens. Ele me ordenou que catasse folhas, das 8 às 10 horas da manhã, diante do hospital. Bebi o café e fumei alguns cigarros em companhia do médico, em uma poltrona, diante da casa. Sua mulher está sentada conosco e o médico tenta fazer com que eu fale de meu passado, ajudado pela sua mulher.

– E então, Papillon, e depois? Que foi que lhe aconteceu depois que deixou os índios pescadores de pérolas?…

Passo todas as tardes com essas duas pessoas admiráveis.

– Venha me visitar todos os dias, Papillon – disse-me a mulher do doutor. – Primeiro, porque quero vê-lo; depois, para ouvir as histórias que lhe aconteceram.

Todo dia, passo algumas horas com o médico e sua mulher, às vezes só com a mulher dele. Obrigando-me a contar minha vida passada, eles estão persuadidos de que isso contribui para me equilibrar definitivamente. Decidi pedir ao médico que me mande à Ilha do Diabo.

Está feito: devo partir amanhã. Esse doutor e sua mulher sabem por que vou à Ilha do Diabo. Foram tão bons comigo, que não quis enganá-los:

– Doutor, não agüento mais esta prisão, faça com que me mandem para a Ilha do Diabo, faça com que eu escape ou estoure, mas que isto acabe!

– Eu o compreendo, Papillon. Este sistema de repressão me desgosta, esta administração é podre. Então, adeus e boa sorte!