Estamos em 1941, há onze anos que estou na cadeia. Tenho 35 anos. Passei os dez anos mais bonitos da minha vida na cela ou na masmorra. Tive apenas sete meses de liberdade completa com a minha tribo de índios. Os filhos que fui obrigado a ter com minhas duas mulheres índias estão agora com oito anos. Que horror! Como o tempo passou depressa! Mas, olhando para trás, contemplo estas horas, estes minutos, e recordo como custaram a passar quando os’ suportava, como cada um deles ficou integrado nesse calvário.
Trinta e cinco anos! Onde estão Montmartre, a Praça Blanche, Pigalle, o salão de baile do Petit Jardin, o bulevar de Clichy? Onde está Nenette, com seu rosto de madona, verdadeiro camafeu, Nénette que, com seus grandes olhos negros, desesperada, gritou no tribunaclass="underline" “Não se preocupe, meu querido, estarei com você até lá”? Onde está Raymond Hubert com seu “Seremos absolvidos”? Onde estão os doze viados do júri? E os guardas? e o promotor? Que é feito de meu pai e das famílias que minhas irmãs constituíram sob o jugo alemão?
Quantas fugas! Vejamos, quantas?
A primeira, quando fugi do hospital, depois de derrubar os guardas a cacetadas.
A segunda na Colômbia, em Rio Hacha, A mais bonita. Lá, eu tinha sido completamente vitorioso. Por que fui deixar minha tribo? Um estremecimento de desejo percorre meu corpo. Tenho a impressão de sentir ainda dentro de mim as sensações dos atos do amor com as duas irmãs índias.
Depois a terceira, a quarta, a quinta e a sexta em Barranquilla. Quanto azar nessas fugas! O golpe da missa, tão desgraçadamente malogrado! A dinamite que explodiu! Clousiot, que ficou pendurado pelas calças! E a demora do narcótico!
A sétima, em Royale, onde aquele puto do Bébert Celier me denunciou. Aquela teria dado certo, claro, se não fosse por ele. Se ele tivesse calado a boca, eu estaria livre com meu pobre amigo Carbonieri.
A oitava, a última, a do asilo. Um erro, um grande erro da minha parte, ter deixado o italiano escolher o lugar de entrar no mar. Duzentos metros mais para baixo, perto do matadouro, teríamos certamente mais facilidade para soltar a jangada.
Este banco – onde Dreyfus, condenado inocente, encontrou a coragem de continuar a viver apesar de tudo – deve servir-me para alguma coisa. Nunca me darei por vencido. Tentarei outra fuga.
Sim, esta pedra lisa, polida, em cima desse precipício, onde as ondas batem enraivecidas sem parar, será para mim um apoio e um exemplo. Dreyfus nunca se deixou abater e sempre, até o fim, lutou pela sua reabilitação. É verdade que ele teve Émile Zola com seu famoso Eu Acuso para defendê-lo. Todavia, não fosse um homem de muita fibra, diante de tanta injustiça teria se jogado com certeza no abismo, deste mesmo banco. Ele agüentou o golpe. Não devo ser menos forte do que ele e preciso largar de lado essa idéia de tentar uma nova fuga com a alternativa: vencer ou morrer. Preciso esquecer a palavra morrer, para pensar somente em vencer e ser livre.
Nas longas horas que passo sentado no banco de Dreyfus, meus pensamentos vagueiam, sonham com o passado e constroem um futuro cor-de-rosa. Meus olhos ficam freqüentemente ofuscados por tanta luz, pelos reflexos da crista das ondas. De tanto olhar sem realmente enxergar este mar, conheço todos os caprichos possíveis e imagináveis das ondas que acompanham o vento. O mar, inexoravelmente, sem jamais se cansar, ataca os rochedos mais avançados da ilha. Ele os escava, corrói as rochas, parece dizer à Ilha do Diabo: “Vá embora, você precisa desaparecer, você me estorva quando eu me lanço sobre o continente, você barra o meu caminho. É por isso que cada dia, sem parar, eu arranco um pedacinho de você”. Quando há tempestade, o mar se entrega à loucura e não apenas raspa, arrancando o que consegue destruir, mas ainda procura penetrar em todos os cantos para, pouco a pouco, minar por baixo esses gigantes de pedra, que parecem dizer: “Por aqui não se passa”.
Então descubro uma coisa importantíssima. Justo embaixo do banco de Dreyfus, diante de imensas rochas em forma de ferradura, as ondas atacam, arrebentam e se retiram com violência. As toneladas de água não podem se dispersar, porque ficam presas entre esses dois penedos que formam uma ferradura de cerca de 5 ou 6 metros de largura. À frente fica o penhasco, portanto a água das ondas não tem outra saída senão voltar para o mar.
Isso é muito importante porque, se na hora em que a onda bate e volta, eu me jogar do rochedo com um saco de cocos, mergulhando diretamente dentro dela, sem sombra de dúvida ela me arrastará consigo ao se retirar.
Eu sei onde posso pegar muitos sacos de juta; no mangueirão há sacos à vontade, para o recolhimento dos cocos.
A primeira coisa a fazer é uma experiência. Quando há lua cheia, a maré é mais alta e portanto as ondas são mais fortes. Vou esperar a lua cheia. Um saco de juta bem costurado, cheio de cocos secos com sua casca de fibra, fica bem escondido numa espécie de gruta: para entrar nela, é preciso mergulhar e passar debaixo da água. Descobri essa gruta mergulhando para apanhar lagostins. Eles ficam grudados no teto da gruta, que só recebe ar quando a maré está baixa. Num outro saco, que amarrei ao saco de cocos, coloquei uma pedra que deve pesar 35 ou 40 quilos. Como vou partir com dois sacos de cocos em vez de um e peso 70 quilos, a proporção é a mesma: um saco para 35 quilos.
Estou excitadíssimo com a experiência. Este lado da ilha é tabu. Ninguém jamais poderá imaginar que alguém vá escolher o local mais batido pelas ondas, e portanto o mais perigoso, para fugir.
E, no entanto, é o único lugar de onde, se eu conseguir me afastar da costa, serei levado para o largo e não poderei de maneira alguma ir me espatifar na Ilha Royale.
É deste lugar que eu tenho que sair.
O saco de cocos e a pedra são muito pesados e nada fáceis de carregar. Não consegui empurrá-los para cima do rochedo. A rocha é escorregadia e está sempre molhada pelas ondas. Chang, com quem falei, vai me ajudar. Ele pegou todos os apetrechos de pesca, linhas de fundo, porque, se formos surpreendidos, vamos dizer que fomos colocar as linhas para apanhar tubarões.
– Vamos, Chang. Um pouco mais e vai dar.
A lua cheia clareia a cena como em pleno dia. O barulho das ondas me ensurdece. Chang pergunta:
– Você está pronto, Papillon? Jogue naquela lá.
A onda, de uns 5 metros de altura, levanta-se e se precipita como louca contra o rochedo, vai quebrar debaixo da gente, mas o choque é tão violento, que a crista passa por cima do rochedo e nos molha inteiramente. Apesar disso, a gente joga o saco no momento exato em que ela forma um redemoinho antes de se retirar. Carregado como uma palha, o saco entra no mar.
– Aí, Chang, está bem.
– Espere para ver se saco não voltar.
Menos de cinco minutos depois, desanimado, vejo chegar o saco empoleirado na crista de um imenso vagalhão, de 7, 8 metros de altura ou mais. A onda levanta o saco de cocos e a pedra, e carrega-os em cima da crista, um pouco antes da espuma. E, com uma força espantosa, os devolve para o lugar de onde partiram, um pouco à esquerda. A coisa se espatifa sobre a rocha em frente. O saco se abre, os cocos se espalham e a pedra rola para o fundo do abismo.
Ensopados até os ossos, porque a onda nos molhou inteiramente e praticamente nos derrubou – felizmente para trás, em terra -, esfolados e chateados, Chang e eu, sem olhar mais para o mar, afastamo-nos o mais depressa possível desse lugar maldito.
– Nada bom, Papillon. Nada bom esta idéia de fugir da Ilha do Diabo. É melhor Royale. Do lado sul, você pode sair melhor do que daqui.
– É, mas em Royale a fuga pode ser descoberta em duas horas no máximo. No saco de cocos, só com o impulso da onda, posso ser facilmente apanhado de novo pelas três lanchas da ilha. Ao passo que aqui, para começar, não existem barcos; em segundo lugar, com certeza tenho toda a noite pela frente antes de o pessoal perceber a fuga; depois, podem pensar que eu me afoguei pescando. Na Ilha do Diabo não há telefone. Se eu fugir com mau tempo, não existe chalupa capaz de chegar até aqui. Portanto, é aqui que preciso partir. Mas como?