Não vejo meu companheiro. Esta noite que começa é muito importante, porque, se a sorte permitir que o vento sopre durante toda a noite com a mesma força, vou andar bastante até amanhã de manhã.
Mais a noite avança, mais forte sopra o vento. A lua sai lentamente do mar, está de um vermelho pardacento e, quando, enfim livre, se apresenta enorme, inteira, distingo claramente suas manchas negras, que lhe dão o aspecto de um rosto.
Já são mais de 10 horas da noite. A noite fica cada vez mais clara. À medida que a luz se levanta, o clarão lunar fica mais intenso. As ondas ficam platinadas e sua estranha reverberação queima meus olhos. Não é possível deixar de olhar esses reflexos prateados, mas realmente machucam e queimam meus olhos, que já estão irritados pelo sol e a água salgada.
Por mais que eu mesmo ache que estou exagerando, não tenho vontade de resistir e fumo três cigarros seguidos.
Nada de anormal com a jangada, que, num mar fortemente agitado, sobe e desce sem problemas. Não posso ficar por muito tempo com as pernas esticadas sobre o saco de cocos, porque a posição sentada me dá logo cãibras horríveis.
Estou permanentemente molhado até a cintura. O peito está quase seco, o vento secou a malha, as ondas não me molham acima da cintura. Meus olhos ardem cada vez mais. Fecho-os. De vez em quando, pego no sono. “Você não pode dormir.” Fácil dizer, mas não agüento mais. Merda! Luto contra estes entorpecimentos. É, cada vez que retomo o senso da realidade, sinto uma dor aguda no cérebro. Tiro o isqueiro. De vez em quando me queimo, encostando a chama no braço direito ou no pescoço.
Sinto uma angústia horrível que procuro afastar com toda a minha energia. Será que vou dormir? E, se cair na água, o frio vai me acordar? Fiz bem de me prender de novo com a corrente. Não posso perder esses dois sacos, eles são a minha vida. Vai ser mesmo o diabo se, ao cair na água, eu não acordar mais.
Depois de alguns minutos estou de novo todo molhado. Uma onda rebelde, que com certeza não queria seguir na direção normal das outras, veio chocar em mim do lado direito. Não só ela me molhou mas ainda me jogou de atravessado, e duas outras ondas normais me cobriram completamente, da cabeça aos pés.
A segunda noite está bem adiantada. Que horas poderão ser? Pela posição da lua, que começa a descer a oeste, devem ser mais ou menos 2 ou 3 horas da manhã. Há cinco marés, trinta horas, que estamos na água. Ficar molhado até os ossos me serve para alguma coisa: o frio me acordou completamente. Estou tiritando, mas conservo os olhos arregalados sem esforço. As pernas ficam endurecidas e resolvo dobrá-las, colocando os pés debaixo das nádegas. Levantando-me com as duas mãos, uma de cada vez, consigo sentar-me em cima das pernas. Os dedos dos pés estão gelados, quem sabe se agora vão esquentar.
Fico bastante tempo assim, sentado com as pernas cruzadas. Mudar de posição me fez bem. Tento ver Sylvain, pois a lua ilumina bastante o mar. Só que ela já desceu e, com ela de frente, não consigo distinguir direito. Não, não enxergo nada. Ele não tinha nada para se amarrar aos sacos, será que está ainda em cima deles? Procuro por ele desesperadamente, é inútil. O vento está forte, mas é regular, não muda de repente, e isto é muito importante. Acostumei-me com seu ritmo e meu corpo forma um só volume com os sacos.
De tanto procurar em volta, só tenho uma idéia fixa na cabeça: ver meu companheiro. Seco os dedos no vento e assobio com todas as minhas forças, com os dedos na boca, Escuto. Ninguém responde. Será que Sylvain sabe assobiar com os dedos? Não sei. Devia perguntar para ele antes de partir. Podíamos até fazer dois apitos. Reprovo-me por não ter pensado nisso. Depois coloco as duas mãos diante da boca e grito: “Hu-Hu!” Só o barulho do vento me responde e o chuá-chuá das ondas.
Então, sem me importar mais, levanto-me e, de pé em cima dos sacos, levantando a corrente com a mão esquerda, fico me equilibrando enquanto cinco ondas me carregam na sua crista. Quando chego lá em cima fico completamente de pé e, para descer e tornar a subir, fico agachado. Nada à direita, nada à esquerda, nada pela frente. Será que ele está atrás de mim? Não tenho coragem de ficar de pé e olhar para trás. A única coisa que tenho a impressão de ter visto, sem nenhuma dúvida, é uma linha preta marcada nesta noite de lua. Com certeza é a floresta.
De dia vou ver as árvores, isso me faz bem. “De dia, você vai ver a floresta, Papi! Se Deus quiser, você vai ver também seu companheiro!”
Estiquei de novo as pernas depois de ter esfregado os dedos dos pés. Depois resolvo secar as mãos e fumar um cigarro. Fumo dois. Que horas serão? A lua está bastante baixa. Não lembro mais em quanto tempo antes do nascer do sol ela desapareceu na noite passada. Tento me lembrar com os olhos fechados, recordando as imagens da primeira noite. Inútil. Ah, é! De repente vejo claramente o sol levantar-se a leste e, ao mesmo tempo, uma ponta da lua ainda visível na linha do horizonte, a oeste. Então, devem ser quase 5 horas. A lua é bastante vagarosa para cair no mar. O Cruzeiro do Sul desapareceu há muito tempo, a Ursa Maior e a Ursa Menor também. Somente a estrela Polar brilha mais que todas as outras. Depois que o Cruzeiro do Sul sumiu, a Polar é a rainha do céu.
O vento parece aumentar. Pelo menos está mais denso, por assim dizer, do que durante a noite. Agora, as ondas estão mais fortes e mais profundas; e, na sua crista, a espuma branca é maior do que no começo da noite.
Há trinta horas que estou no mar. Preciso reconhecer que, por enquanto, as coisas vão mais bem do que mal e que o dia mais duro vai ser o que começa.
Ontem, por ter ficado exposto diretamente ao sol das 6 da manhã às 6 da noite, fiquei tremendamente cozido e assado. Hoje, com o sol batendo de novo em cima de mim, não vai ser fácil atravessar o dia. Meus lábios já estão rachados e, no entanto, estou ainda no frescor da noite. Ardem tanto quanto os olhos. Os braços e as mãos, a mesma coisa. Se puder, não vou descobrir os braços. Se for possível agüentar a malha de lã, vou ficar vestido com ela. O que me arde terrivelmente, também, é entre as coxas e o ânus. Nesse lugar, não é por causa do sol, mas da água salgada e da fricção em cima dos sacos.
De qualquer maneira, meu caro, queimado ou não, você está fugindo e, para estar onde está, vale bem a pena agüentar isto e muito mais. As perspectivas de chegar vivo na Terra Grande são 90 por cento positivas e isto é alguma coisa, é ou não é? Nem que eu chegue completamente esfolado e vivo pela metade, não é preço caro por uma viagem dessas e um resultado desses. Imagine que não vi um único tubarão. Estão todos de férias? Você não pode negar que é um cara de muita sorte. Desta vez, você vai ver, vai dar certo. De todas as fugas muito estudadas, muito preparadas, afinal, a fuga bem sucedida vai ser a mais idiota. Dois sacos de cocos e depois o vento e o mar levam você. Não precisa sair de Saint-Cyr para saber que todo destroço volta para a praia.
Se o vento e as ondas continuarem durante o dia com a mesma força desta noite, com certeza vamos chegar à terra durante a tarde.
O monstro dos trópicos surge atrás de mim. Parece bastante decidido a torrar tudo hoje, porque sai com todo o fogo. Ele expulsa a noite de lua em dois tempos. Não espera nem sair completamente de seu leito, para já se impor como o dono, o rei indiscutível dos trópicos. O vento num instante já ficou quase morno. Em uma hora vai fazer calor. Uma primeira sensação de bem-estar se desprende de todo o meu corpo. Mal os primeiros raios me tocam, um doce calor me percorre da cintura até a cabeça. Levanto a toalha feito um capuz, expondo o rosto ao sol, como se estivesse diante de um fogo de lenha. O monstro, antes de me queimar, quer me fazer sentir que ele é a vida antes de ser a morte.
O sangue corre fluido nas minhas veias e até minhas coxas molhadas sentem a circulação deste sangue vivificador.
Vejo claramente a floresta, o topo das árvores. Tenho a impressão de que não está muito longe. Vou esperar que o sol suba mais um pouco, para ficar de pé em cima dos sacos e ver se consigo enxergar Sylvain.