Mokrane se levanta. É do mesmo tamanho que eu, 1 metro e 74 mais ou menos, e também é forte. A provocação desagrada-o e ele já vai fazer um gesto para começar a luta quando, rapidamente, tiro o bisturi reluzente e novinho em folha e, com ele na mão, digo:
– Dê um passo e morre que nem cachorro.
Desorientado por me ver armado num lugar onde a gente está sendo constantemente revistado, impressionado pela minha atitude e pelo comprimento da arma, ele diz:
– Eu me levantei para discutir, não para brigar.
Sei que não é verdade, mas é de meu interesse que ele não saia humilhado na frente de seus amigos. Ofereço uma saída elegante.
– Bem, já que você se levantou para discutir…
– Não sabia que Galgani era seu amigo. Pensava que era um otário e você deve compreender, Papillon, que, se a gente está depenado, o jeito é achar uma gaita para fugir daqui.
– Vá lá, isso é normal. Você tem o direito, Mokrane, de se defender. Só que já sabe que deste lado não dá pé. Vá se virar em outra banda.
Ele me estende a mão e eu aceito. Ufa! Livrei-me de uma boa, porque, se matasse o cara, não viajava amanhã. Um pouco mais tarde, percebi que tinha cometido um erro. Galgani volta comigo. Eu lhe digo:
– Não fale a ninguém sobre este incidente. Não quero ouvir bronca do tio Dega.
Procuro convencer Galgani a aceitar o canudo e ele me diz: “Amanhã, antes da partida”. Mas, no dia seguinte, ele deu sumiço tal, que embarquei para o degredo com dois canudos no rabo
Nesta noite, nesta cela onde somos uns onze homens, ninguém fala. É que todos pensam que é o último dia passado sobre a terra francesa. Cada um de nós fica um tanto dominado pela saudade de deixar a França para sempre, tendo por destino uma terra desconhecida, onde vamos viver num regime desconhecido.
Dega não fala. Está sentado ao meu lado, junto da porta gradeada que dá para o corredor e por onde chega um pouco mais de ar do que em outros lugares. Eu me sinto completamente desorientado. Temos informações tão desencontradas sobre o que nos aguarda, que não sei se devo estar contente, triste ou desesperado.
Os tipos que me cercam nesta cela são todos do submundo. Só não é do submundo o pequeno corso, que nasceu no degredo. Todos estes homens se encontram num estado amorfo. A gravidade e a importância do momento tornaram-nos quase mudos. A fumaça dos cigarros percorre a cela como uma nuvem, levada pela corrente de ar do corredor, e, se a gente não quiser irritar os olhos, o jeito é se sentar mais baixo do que as nuvens de fumaça. Ninguém dorme, com exceção de André Baillard, o que se justifica, pois já havia perdido a vida. Para ele, o que vier não deixará de ser um paraíso inesperado.
O filme de minha vida se desenrola rapidamente à minha frente: minha infância numa família cheia de amor, de educação, de boas maneiras e de nobreza; as flores do campo, o murmúrio dos riachos, o gosto das nozes, dos pêssegos e das ameixas, que o nosso pomar nos oferecia copiosamente; o perfume de mimosa que, a toda primavera, florescia diante de nossa porta; o exterior de nossa casa e o interior, com as atitudes da minha gente. Tudo isto desfila rapidamente diante dos meus olhos. Este filme sonoro em que ouço a voz da minha pobre mãe, que tanto me amou, e, depois, a do meu pai, sempre cheia de ternura e carícia, e os latidos de Clara, a cadela de caça de papai, que me chama do jardim para brincar, as meninas e os meninos de minha infância, companheiros de folguedo dos melhores momentos de minha vida; este filme, ao qual assisto sem querer, esta projeção de uma lanterna mágica iluminada contra minha vontade pelo meu subconsciente, enche de doce emoção esta noite de expectativa para o salto em direção ao grande desconhecido do futuro.
É hora de fazer o balanço. Vejamos: tenho 26 anos, estou com ótima saúde, tenho na barriga 5 600 francos, que são meus, e 25 000 francos de Galgani. Dega, ao meu lado, tem 10 000. Acho que posso contar com 40 000 francos, porque, se Galgani é incapaz de defender esta bolada aqui, ainda menos capaz será a bordo do navio e na Guiana. Ele sabe disso, aliás, e foi por isso que não veio buscar seu canudo. Logo, posso contar com este dinheiro, levando, está claro, Galgani comigo: é preciso que ele tire vantagem deste dinheiro, que é dele e não meu. Vou empregá-lo para o bem dele, mas também saio ganhando. Quarenta mil francos é um dinheirão e, portanto, vou poder comprar facilmente cúmplices, forçados cumprindo pena, libertos e vigilantes.
O balanço é positivo. Assim que chegar, devo fugir em companhia de Dega e Galgani, é só isso que importa. Apalpo o bisturi, satisfeito por sentir o frio de seu cabo de aço. Ter comigo uma arma tão temível me dá segurança. Já vi sua utilidade no incidente com os árabes. Por volta das 3 horas da manhã, reclusos alinham à frente da guarda da cela onze sacos de viagem de tecido grosso, cheios de arrebentar, cada um com uma grande etiqueta. Posso ver um que pende para o interior da grade. Leio: C… Pierre, 30 anos, 1,73 m, tamanho 42, sapatos 41, matrícula X… Este Pierre C… é Pierrot le Fou, um bordelês condenado em Paris, por crime de homicídio, a vinte anos de trabalhos forçados.
É um homem do nosso meio, bom rapaz, direito e correto, eu o conheço bem. Esta ficha me mostra como é minuciosa e bem organizada a administração que dirige a prisão de forçados. É melhor que a da caserna, onde fazem uma prova sumária das roupas. Aqui, tudo é registrado e cada um receberá, portanto, roupas sob medida. Por uma abertura na boca do saco, vejo que a roupa é branca com listras verticais de cor vermelha. Com este traje, ninguém passa despercebido.
Faço força para que meu cérebro avive as imagens dos jurados, do promotor, etc. Ele se recusa categoricamente a me obedecer e não consigo obter senão pálidas imagens. Compreendo que, para viver intensamente, como vivi, as cenas da Conciergerie ou de Beaulieu, é preciso estar só, completamente só. Sinto um alívio ao constatar isso e compreendo que a vida coletiva, que me aguarda, provocará outras necessidades, outras reações, outros projetos.
Pierrot le Fou se aproxima da grade e me diz:
– Como vai, Papi?
– Bem. E você?
– Ora, bem, sempre sonhei viajar para a América, mas, como sou jogador, nunca pude fazer economia para comprar a passagem. Os tiras acharam de me oferecer esta viagem gratuita. Legal, não reclamo, é ou não é, Papi?
Ele fala com naturalidade, não há nenhuma fanfarronada nas suas palavras. A gente sente que ele está muito seguro de si:
– Esta viagem gratuita oferecida pelos tiras para ir à América tem mesmo suas vantagens. Prefiro ir ao degredo do que apanhar quinze anos de reclusão na França.
– Falta saber o resultado final, Pierrot. Não acha? Ficar biruta numa cela ou morrer de miséria fisiológica num calabouço de uma reclusão qualquer na França é pior ainda do que se apagar com lepra ou febre amarela. É a minha opinião.
– Também é a minha.
– Olhe, Pierrot, esta ficha é sua.
Ele se inclina, olha muito atentamente para ler e fala devagar:
– Estou com pressa de botar esta roupa, estou com vontade de abrir o saco e me vestir, ninguém vai dizer nada. Afinal de contas, estes troços são para mim.
– Tenha calma, espere a hora. Não é o momento de arranjar trapalhadas, Pierrot. Precisamos de tranqüilidade.
Ele compreende e se afasta da grade.
Louis Dega me olha e diz:
– Garotão, é a última noite. Amanhã, a gente se afastará de nosso belo país.
– Nosso país tão belo não tem uma bela justiça, Dega. Talvez venhamos a conhecer outros países, que não sejam bonitos como o nosso, porém que tenham uma maneira mais humana de tratar os que erraram.
Não acreditava muito no que dizia, mas o futuro me confirmaria que tinha razão. De novo, o silêncio.