Em menos de três horas, estamos diante de um charco de lama. Nenúfares em flor e grandes folhas verdes estão presos no barro. Seguimos pela borda do banco de lama.
– Cuidado para não escorregar, senão você desaparece sem nenhuma esperança de sair – adverte Van Hue, que acaba de me ver escorregar.
– Vá indo, eu sigo você e vou prestar mais atenção.
Na nossa frente, uma ilhota, a uns 150 metros. Do meio da minúscula ilha sai um pouco de fumaça. Deve ser da carvoaria. Vejo um jacaré dentro do barro, só aparecem os olhos. Do que será que se alimenta nesse barro o crocodilo?
Depois de andar mais de 1 quilômetro pela margem dessa espécie de lago de lama, Van Hue pára e começa a cantar em chinês aos berros. Um sujeito se aproxima da borda da ilha. É baixo e veste somente um short. Os dois chinas conversam. Demoram e começo a perder a paciência, quando, finalmente, eles param.
– Não vamos lá – diz Van Hue.
Sigo-o, voltamos pelo mesmo caminho.
– Está tudo bem, é um amigo de Cuic-Cuic. Cuic-Cuic foi caçar, não vai demorar para voltar, precisamos esperar aqui.
Sentamos. Menos de uma hora depois, Cuic-Cuic chega. É um Sujeitinho seco, amarelo, com dentes muito polidos, olhos inteligentes e francos.
– Você é amigo de meu irmão Chang?
– Sou.
– Está bem. Você pode partir,. Van Hue.
– Obrigado – diz Van Hue.
– Tome, leve essa perdiz.
– Não, obrigado.
Aperta minha mão e vai embora.
Cuic-Cuic me leva atrás de um porco que anda à sua frente. Ele o segue de perto.
– Preste bem atenção, Papillon. O menor passo em falso e você afunda. Se acontecer um acidente, não podemos nos ajudar um ao outro, porque então não é um, mas dois que desaparecem. O caminho para atravessar nunca é o mesmo porque a lama se mexe, mas o porco encontra sempre uma passagem. Uma vez tive que esperar dois dias para passar.
De fato, o porco preto fareja e rapidamente se embrenha na lama. O chinês fala com ele na sua língua. Fico desconcertado de ver esse animalzinho que lhe obedece como um cão. Cuic-Cuic observa e eu arregalo os olhos, assombrado. O porco chega do outro lado sem nunca afundar mais do que alguns centímetros. Rapidamente, meu novo amigo se embrenha por sua vez e diz:
– Ponha os pés nas marcas dos meus. Precisa andar bem depressa, porque os buracos que o porco deixou se apagam imediatamente.
Atravessamos sem dificuldade. Nunca cheguei a ficar com a lama acima da barriga da perna e, mesmo assim, só no final.
O porco fez dois desvios compridos, o que nos obrigou a andar em cima dessa crosta firme por mais de 200 metros. O suor escorre de todos os lados. Não posso dizer que sentia somente medo, estava realmente aterrorizado.
Na primeira parte do trajeto, perguntava-me se meu destino queria que eu morresse como Sylvain. Tornava a ver o coitado no seu último instante e, embora estivesse bem acordado, enxergava seu corpo, mas seu rosto parecia ter os meus traços. Que impressão me produziu essa passagem! Não vai ser fácil esquecê-la.
– Dê-me a mão.
Cuic-Cuic, o Sujeitinho que é só pele e osso, ajuda-me a pular na beirada.
– Bom, meu caro, não vai ser aqui que os caçadores de homens vão procurar a gente.
– Ah, quanto a isso, pode ficar sossegado!
Penetramos na ilhota. Um cheiro de gás carbônico me pega a garganta. Tusso. É a fumaça das duas carvoarias que queimam. Aqui não tem perigo de que venham os mosquitos. A sota-vento, envolvida na fumaça, uma choça, um casebre com telhado de folhas e as paredes também igualmente de folhas, trançadas como esteiras. Uma porta e, na frente dela, o pequeno chinês que vi antes de Cuic-Cuic.
– Bom dia, sinhô.
– Fale francês com ele e não patoá, é um amigo de meu irmão.
O china, um homem de tamanho reduzido, me examina da cabeça aos pés. Satisfeito com sua inspeção, me estende a mão, sorrindo com uma boca desdentada.
– Entre, sente.
É limpo o único cômodo desse casebre. Alguma coisa cozinha no fogo, num caldeirão. Só existe uma cama feita de galhos de árvores, a 1 metro do chão pelo menos.
– Ajude-me a fazer um lugar para ele dormir essa noite.
– Tá bom, Cuic-Cuic.
Em menos de meia hora, meu catre está pronto. Os dois chineses põem a mesa e nós comemos uma sopa deliciosa, depois arroz com carne e cebolas.
O sujeito, amigo de Cuic-Cuic, e aquele que vende o carvão de lenha. Não mora na ilha, por isso, quando escurece, ficamos sozinhos, Cuic-Cuic e eu.
– Pois é, roubei todos os patos do chefe do presídio e é por isso que fugi.
Com os nossos rostos iluminados por alguns instantes pelas chamas do pequeno fogo, sentamos um em frente ao outro. Examinamo-nos e, falando, cada um de nós procura conhecer e compreender o outro.
O rosto de Cuic-Cuic não é bem amarelo. Com o sol, seu amarelo natural ficou cor de cobre. Seus olhos bastante oblíquos, de um preto brilhante, olham bem de frente quando ele fala. Fuma uns cigarros compridos feitos por ele mesmo com folhas de fumo preto.
Eu continuo fumando um cigarro enrolado num papel de arroz que o maneta trouxe.
– Então tive que fugir, porque o chefe, o dono dos patos, queria me matar, faz três meses. O azar é que perdi no jogo, não só o dinheiro dos patos, mas também o do carvão das duas carvoarias.
– Onde é que você joga?
– No mato. Toda noite, tem o jogo dos chineses do presídio de Inini e dos libertos que vêm de Cascade.
– Você resolveu embarcar?
– Mal consigo agüentar a espera e, quando vendi o carvão de lenha, pensei em comprar um barco, em encontrar um sujeito que saiba lidar com ele e que queira ir comigo. Mas, em três semanas, com a venda do carvão, a gente vai poder comprar o barco e ir embora, já que você sabe dirigir.
– Eu tenho algum dinheiro, Cuic-Cuic. Não precisamos esperar a venda do carvão para comprar o barco.
– Então está bom. Existe um bom barco para vender por 1500 francos. É um negro, cortador de lenha, que vende.
– Bom, você já viu?
– Vi.
– Quero ver também.
– Amanhã vou ver Chocolat, é o nome dele. Conte-me a sua fuga, Papillon. Achava que era impossível fugir da Ilha do Diabo. por que é que meu irmão não saiu com você?
Falo da fuga, da onda Lisette, da morte de Sylvain.
– Entendi por que Chang não quis partir com você. É mesmo arriscado. Você é um homem privilegiado pela sorte, é por isso que conseguiu chegar vivo até aqui. Fico contente,
Há mais de três horas que eu e Cuic-Cuic conversamos. Dormimos cedo, porque ele quer ir de madrugada procurar Chocolat. Depois de colocar um galho enorme no fogo para durar a noite toda, deitamos. A fumaça me faz tossir e me fecha a garganta, mas tem uma vantagem: nem um mosquito.
Esticado no meu catre, coberto com uma boa coberta, bem quentinho, fecho os olhos. Não consigo pegar no sono. Estou excitado demais. É, a fuga está indo bem. Se o barco for bom, antes de oito dias estou no mar. Cuic-Cuic é baixo, seco, mas deve ter uma força fora do comum e uma resistência a toda prova. Com certeza é honesto e correto com seus amigos, mas deve ser também muito cruel com seus inimigos. É difícil ler o rosto de um asiático, não exprime nada. Todavia, seus olhos depõem a seu favor.
Adormeço e sonho com um mar banhado de sol, meu barco vencendo alegremente as ondas, no caminho da liberdade.
– Quer café ou chá?
– O que é que você está tomando?
– Chá.
– Quero chá.
O dia está nascendo, o fogo ficou aceso desde ontem, a água ferve numa panela. Um galo canta seu alegre cocorocó. Os pássaros não cantam à nossa volta, com certeza a fumaça das carvoarias os espanta. O porco preto está deitado embaixo da cama de Cuic-Cuic. Deve ser um preguiçoso, porque continua dormindo. Uns biscoitos feitos de farinha de arroz assam na brasa. Depois de me servir de chá, meu amigo corta pela metade um biscoito, besunta-o de margarina e dá para mim. Comemos bastante. Como três biscoitos bem assados.