– E os outros dois?
– Foi três dias antes de você chegar. A noite era escuríssima e silenciosa, o que é muito raro na floresta. Aqueles dois estavam em volta do brejo desde o anoitecer. Um deles, quando a fumaça ia na sua direção, tinha às vezes acessos de tosse. Foi esse ruído de tosse que me anunciou a presença dele. Antes do amanhecer, tentei passar pela lama do lado oposto ao local onde eu tinha percebido a tosse. Para encurtar a história, vou lhe dizer que degolei o primeiro caçador de homens. Não teve tempo nem de gritar. O outro, armado com um fuzil de caça, estava tão empenhado em espiar através da vegetação da ilha para ver o que que se passava lá dentro, que se descobriu. Derrubei ele com um tiro de espingarda e, como não estava morto, enterrei minha faca no coração dele. São esses, Papillon, os três caras que você descobriu na carvoaria. Eram dois árabes e um francês. Atravessar a lama com um deles nas costas não foi fácil. Tive que dar duas viagens porque pesavam demais. Enfim, consegui colocá-los na carvoaria.
– Foi isso mesmo que aconteceu?
– Foi, Papillon, juro.
– Por que é que você não botou eles na areia?
– Já falei para você, a lama devolve os cadáveres. Às vezes caem lá dentro uns veados grandes e uma semana depois sobem à superfície. A gente sente o cheiro de carne podre até que os corvos os devoram. Logo, seus gritos e vôos chamam a atenção dos curiosos, Papillon, eu juro, comigo você não precisa ter medo de nada. Tome, para você ter mais certeza, pegue o fuzil se quiser. Pode ficar com ele.
Tenho uma vontade louca de aceitar a arma, mas me domino e o mais naturalmente possível digo:
– Não, Cuic-Cuic. Se estou aqui, é porque me sinto com um amigo, em segurança. Amanhã, você precisa queimar os sapatos dos homens, pois não sabemos o que pode acontecer quando a gente for embora daqui. Não estou com vontade de ser acusado, mesmo ausente, de três assassinatos.
– Tá, vou tornar a queimá-los amanhã. Mas fique sossegado, nunca ninguém vai botar os pés nesta ilha. É impossível passar sem afundar.
– E com uma balsa de borracha?
– Não tinha pensado nisso.
– Se alguém trouxer a polícia até aqui e eles encasquetarem de vir até a ilha, acredite que com uma balsa eles vão poder passar, e por isso que precisamos sair o mais rápido possível.
– De acordo. Amanhã vamos acender de novo a carvoaria, que aliás não está nem apagada. Só é preciso fazer duas chaminés de ventilação.
– Boa noite, Cuic-Cuic.
– Boa noite, Papillon. E repito, durma bem, pode confiar em mim.
Puxo uma coberta até o queixo, aproveito o calor que ela me dá. Acendo um cigarro. Menos de dez minutos depois, Cuic-Cuic está roncando. Seu porco ao seu lado respira com força. O fogo não tem mais chamas, mas o tronco da árvore – cheio de brasas que ficam avermelhadas quando a brisa penetra no casebre – dá uma impressão de paz e de serenidade. Saboreio esse conforto e adormeço com um pensamento: ou amanhã eu acordo e então tudo irá bem entre Cuic-Cuic e eu, ou o chinês é um artista melhor do que Sacha Guitry para esconder suas intenções e contar histórias, e então não verei mais o sol, porque sei coisas demais a seu respeito e isso pode incomodá-lo.
Com uma caneca de café na mão, o especialista em assassinatos em série me acorda e, como se nada tivesse acontecido, deseja-me um bom dia com um sorriso magnificamente cordial. O dia desponta.
– Tome, tome o seu café, pegue uma bolacha, já está com margarina.
Depois de comer e beber, me lavo lá fora, apanhando a água dentro de um tonel que está sempre cheio.
– Você quer me ajudar, Papillon?
– Quero – digo sem maiores perguntas.
Puxamos pelos pés os cadáveres meio queimados. Reparo, sem dizer nada, que os três têm a barriga aberta: o simpático china deve ter procurado nas tripas deles se tinham algum canudo. Será que eram mesmo caçadores de homens? Por que não seriam caçadores de borboletas ou de animais? Ele os matou para se defender ou para roubá-los? Enfim, chega de pensar nisso. São de novo colocados num buraco da carvoaria, bem cobertos de lenha e de argila. Duas chaminés de ventilação são abertas e a carvoaria volta às suas duas funções: fazer carvão de lenha e transformar em cinzas os defuntos.
– Vamos andando, Papillon.
O porquinho encontra uma passagem em pouco tempo. Como carneirinhos, atravessamos a lama. Sinto uma angústia insuportável na hora de me arriscar a passar por cima dela. O afundamento de Sylvain deixou em mim uma impressão tão forte, que não posso me aventurar despreocupadamente. Enfim, pingando suor frio, caminho atrás de Cuic-Cuic. Cada um dos meus pés pisa na marca dos seus. Não há problema: se ele passa, devo passar.
Mais de duas horas de caminhada nos levam ao lugar onde Chocolat corta lenha. Não encontramos ninguém na floresta e portanto não precisamos nos esconder.
– Bom dia, sinhô.
– Bom dia, Cuic-Cuic.
– Como vai?
– Vai indo.
– Mostre o barco ao meu amigo.
O barco é muito forte, uma espécie de barcaça de carga. É muito pesada, mas firme. Enfio minha faca em todo lugar. Não penetra em nenhum ponto mais de meio centímetro. O fundo também está intato. A madeira com a qual o barco foi fabricado é de primeira qualidade.
– Por quanto quer vender?
– Dois mil e quinhentos francos.
– Dou dois mil.
Negócio fechado.
– Este barco não tem quilha. Pago 500 francos mais, mas você precisa pôr uma quilha, um leme e um mastro. A quilha deve ser de madeira de lei, o leme também. O mastro tem que ter 3 metros de madeira leve e flexível. Quando vai ficar pronto?
– Daqui a oito dias.
– Aqui estão duas notas de 1 000 e uma de 500 francos. Vou rasgá-las em dois, dou a outra metade na entrega. Guarde as três metades das notas com você. Entendeu?
– Está certo.
– Quero permanganato, um tonel de água, cigarros e fósforos, comida para quatro homens por um mês: farinha, óleo, café e açúcar. Estes mantimentos vão ser pagos à parte. Você vai me entregar tudo no rio, o Kourou.
– Sinhô, não posso acompanhar o senhor na embocadura.
– Não pedi isso. Falei para você me entregar o barco no rio e não na enseada.
– Aqui estão os sacos de farinha, uma corda, agulhas e linha para vela.
Voltamos, Cuic-Cuic e eu, para o nosso esconderijo. Chegamos tarde da noite, sem aborrecimentos. Na volta, ele carregou o porco nas costas, porque o bicho estava cansado.
Hoje estou sozinho de novo, costurando a vela, quando ouço uns gritos. Escondido no meio das árvores, aproximo-me da lama e olho do outro lado: Cuic-Cuic discute com o chinês intelectual e gesticula. Tenho a impressão de que ele quer atravessar até a ilha e Cuic-Cuic não quer. Cada um deles está com um facão na mão. O mais exaltado é o maneta. Espero que não me mate Cuic-Cuic. Resolvo me mostrar. Assobio. Eles se viram na minha direção.
– O que é que está acontecendo, Cuic-Cuic?
– Quero falar com você, Papillon – grita o outro. – Cuic-Cuic não quer me deixar passar.
Depois de mais dez minutos de discussão em chinês, o porco os precede e chegam os dois à ilha. Sentados na cabana, cada um com uma caneca de chá na mão, espero que decidam falar.