– É isso – diz Cuic-Cuic. – Ele quer a todo custo fugir com a gente. Eu explico que não tenho nada com esse negócio, que é você que paga e manda em tudo. Não quer acreditar em mim.
– Papillon – diz o outro -, Cuic-Cuic é obrigado a me levar com ele.
– Por quê?
– Foi ele, dois anos atrás, que me cortou o braço numa briga por uma questão de jogo. Me fez jurar que eu não o matava. Jurei, com uma condição: toda a vida vai ter que me sustentar, ou pelo menos enquanto eu exigir. Agora, ele vai embora, nunca mais vou ver ele em toda a minha vida. Por isso, ou ele deixa você partir sozinho, ou me leva também.
– Essa é boa! Acontece cada coisa comigo! Escute, concordo em levar você. O barco é bom e grande, podemos partir juntos, os três. Se Cuic-Cuic estiver de acordo, eu levo você.
– Obrigado – diz o maneta.
– O que é que você diz, Cuic-Cuic?
– Se você quer, eu concordo.
– Uma coisa importante. Você pode sair do presídio sem ser declarado desaparecido e procurado por evasão e chegar ao rio antes da noite?
– Não tem problema. Posso sair desde 3 horas da tarde e. em menos de duas horas, estou na beira do rio.
– De noite, você pode achar o lugar, Cuic-Cuic, para a gente embarcar seu amigo sem perder tempo?
– Posso, sem dúvida nenhuma.
– Venha daqui a uma semana, para saber o dia da saída.
O maneta vai embora alegre, depois de apertar a minha mão. Vejo-os quando se despedem na outra margem. Eles apertam as mãos antes de se deixarem. Está tudo bem. Quando Cuic-Cuic está de novo na cabana, eu começo outra vez:
– Você fez um contrato muito gozado com o seu colega: aceitar sustentá-lo a vida toda é um truque fora do comum. Por que é que você cortou o braço dele?
– Uma briga de jogo.
– Era melhor que você tivesse matado ele.
– Não, porque é um grande amigo. No conselho de guerra a que fui levado por causa disso, ele me defendeu de todo jeito, dizendo que me atacou e que eu agi em legítima defesa. Eu aceitei livremente o acordo, preciso respeitá-lo com muita honestidade. A única coisa é que eu não tinha coragem para contar o negócio para você, porque você é que está pagando toda a fuga.
– Está certo, Cuic-Cuic, não falemos mais nisso. Quando estiver livre, se Deus quiser, você pode fazer o que bem entender.
– Vou manter minha palavra.
– O que pensa fazer, se um dia ficar livre?
– Um restaurante. Sou um ótimo cozinheiro e ele é especialista em chow mein, uma espécie de espaguete chinês.
Este incidente me deixou de bom humor. Essa história é tão gozada, que não consigo deixar de provocar Cuic-Cuic.
Chocolat manteve a palavra: cinco dias mais tarde está tudo pronto. Com uma chuva forte, fomos ver o barco. Não preciso fazer nenhuma crítica. Mastro, leme e quilha foram adaptados perfeitamente, com material de primeira qualidade. Numa espécie de cotovelo do rio, o barco espera a gente com o tonel e os mantimentos. Falta avisar o maneta. Chocolat se encarrega de ir até o presídio para falar com ele. Para evitar o perigo de se aproximar até a margem para apanhá-lo, ele mesmo vai levá-lo diretamente a um lugar seguro.
A saída do rio Kourou está marcada por dois faróis. Se chover, podemos sair sem risco nenhum bem no meio do rio, sem içar as velas, bem entendido, para não sermos vistos. Chocolat deu para a gente tinta preta e um pincel. Vamos pintar na vela um grande K e o número 21. Esse K 21 é a matrícula de um barco de pesca que, às vezes, sai para pescar de noite. No caso de sermos vistos desenrolar a vela na saída para o mar, vão pensar que é o outro barco.
Vai ser amanhã à noite, às 19 horas, uma hora depois do anoitecer. Cuic-Cuic afirma que vai encontrar o caminho e assegura que me levará direto para o esconderijo. Vamos deixar a ilha às 5 horas, para aproveitar uma hora de dia para andar.
A volta à choupana é alegre. Cuic-Cuic, sem se virar, porque eu caminho atrás dele, carrega o porquinho no ombro e não pára de falar:
– Enfim, vou deixar a colônia. Graças a você e a meu irmão Chang, estarei livre. Talvez um dia, quando os franceses saírem da Indochina, eu possa voltar ao meu país.
Em suma, ele confia em mim; e, sabendo que gostei do barco, está contente como uma criança. Durmo pela última noite na ilha, minha última noite na terra da Guiana, espero.
Se sair do rio e entrar no mar, será a liberdade, na certa. O único perigo é o naufrágio, porque desde a guerra não devolvem mais os foragidos de nenhum país. Quanto a isso, pelo menos, a guerra serve para alguma coisa, tem uma vantagem para a gente. Se nos apanham, somos condenados à morte, é verdade, mas vão precisar primeiro nos prender. Penso em Sylvain: estaria aqui comigo, perto de mim, se não tivesse cometido aquela imprudência. Adormeço redigindo um telegrama: “Senhor promotor Pradel – Enfim, definitivamente, venci o caminho da podridão onde o senhor me jogou. Foram necessários nove anos”‘.
O sol está bastante alto quando Cuic-Cuic me acorda. Chá e bolachas. Está tudo cheio de caixas. Vejo duas gaiolas de vime.
– O que é que vai fazer com essas gaiolas?
– Vou pôr as galinhas para a gente comer na viagem.
– Você é doido, Cuic-Cuic! Não vamos levar as galinhas.
– Eu quero levar.
– Está doente? Se por causa da vazante saímos pela manhã e as galinhas e os galos resolvem gritar e cantar no rio, você não percebe o perigo?
– Mas não vou jogar fora as galinhas.
– Asse-as e coloque-as na gordura e no óleo. Ficarão conservadas e nos três primeiros dias a gente papa elas.
Finalmente convencido, Cuic-Cuic parte em busca das galinhas, mas os gritos das primeiras quatro que ele conseguiu apanhar devem ter feito sentir o cheiro da fumaça às outras, porque o chinês não conseguiu agarrar mais nenhuma, foram todas se esconder na floresta. Mistério: os animais pressentiram, não sei como, o perigo.
Carregados como burros, atravessamos a lama atrás do porco. Ele me suplicou para levar o porco com a gente.
– Você garante que ele não vai gritar?
– Juro que não. Ele fica quieto quando eu mando. Mesmo quando um tigre duas ou três vezes perseguiu a gente, e ficava dando voltas para nos pegar, ele não gritou. E, no entanto, estava com todos os pêlos do corpo em pé.
Convencido da boa fé de Cuic-Cuic, concordo em levar seu porco querido. Quando chegamos ao esconderijo, já é noite. Chocolat está lá com o maneta. Duas lâmpadas elétricas me permitem verificar tudo. Não falta nada: as argolas da vela passadas no mastro, o Cutelo arrumado no seu lugar, pronto para ser içado. Cuic-Cuic faz duas ou três vezes a manobra que eu indico. Rapidamente, ele fica sabendo o que eu espero dele. Pago o negro, que foi tão correto. Ele é tão simples, que trouxe fita colante e as metades das notas. Pede para eu colar para ele. Nem por um instante pensou que eu poderia tirar o dinheiro dele. As pessoas que não têm maus pensamentos em relação às outras são boas e direitas. Chocolat era um homem bom e honesto. Depois que viu como tratam os forçados, não teve nenhum remorso em ajudar três deles a fugir desse inferno.
– Adeus, Chocolat. Boa sorte para você e sua família.
– Muito obrigado.
11 O ADEUS À PRISÃO
Embarco por último e, empurrado por Chocolat, o barco avança para o rio. Nada de vela, mas dois bons remos, um manejado por Cuic, na frente, o outro por mim. Em menos de duas horas entramos no rio.
Chove há mais de uma hora. Um saco de farinha tingido me serve de chapéu; Cuic igualmente tem um e o maneta também. O rio é rápido e sua água cheia de turbilhões. Apesar da força da corrente, em menos de uma hora estamos no meio do curso de água. Ajudados pela vazante, três horas depois passamos entre dois faróis. Sei que o mar está próximo, pois os faróis ficam bem no ponto da embocadura. Vela e cutelo no ar, saímos do Kourou sem nenhum aborrecimento. O vento nos pega de lado com uma tal força, que sou obrigado a fazê-lo deslizar sobre a vela. Entramos no mar duramente e, como uma flecha, passamos o canal, afastando-nos rapidamente da costa. Diante de nós, a 40 quilômetros, o farol de Royale nos indica a rota.