Guittou diz;
– Bem, vamos ver; por enquanto, pode ficar com ele.
Provisoriamente, preparamos três camas no chão com velhas cobertas de soldado.
Sentados diante da porta, todos os seis fumando alguns cigarros, conto a Guittou todas as minhas aventuras de nove anos. Seus dois amigos e ele escutam com atenção e vivem intensamente minhas aventuras, pois as sentem em suas próprias experiências. Dois conheceram Sylvain e lamentam sinceramente sua horrível morte. Diante de nós passam e repassam pessoas de todas as raças. De vez em quando, entra alguém que compra sapatos ou uma vassoura, pois Guittou e seus amigos também fazem vassouras para ganhar a vida. Fico sabendo por eles que entre forçados e exilados há uns trinta evadidos em Georgetown. Encontram-se à noite num bar do centro, onde bebem juntos rum ou cerveja. Todos trabalham para suprir suas necessidades, conta Julot, e a maioria se comporta bem.
Enquanto tomamos a fresca na sombra, diante da porta da casinha, passa um chinês e Cuic o interpela. Sem me dizer nada, Cuic vai com ele e o maneta também. Não devem ir longe, pois o porco sai atrás. Duas horas depois, Cuic volta com um asno puxando uma pequena carroça. Orgulhoso como Artaban, pára o burrico, com quem fala em chinês. O asno tem jeito de compreender essa língua. Na carroça estão três camas de ferro desmontáveis, três colchões, travesseiros, três malas. A que ele me dá está cheia de camisas, cuecas, malhas, mais dois pares de sapatos, gravatas, etc.
– Onde encontrou isso, Cuic?
– Meus compatriotas me deram. Amanhã iremos visitá-los, você quer?
– Está combinado.
Esperamos que Cuic volte para devolver o asno e a carroça, mas nada disso. Ele desatrela o asno e amarra-o no pátio.
– Eles me deram também o asno e a carroça de presente. Com isto, disseram, eu posso ganhar a vida facilmente. Amanhã de manhã, um conterrâneo meu vai vir para me ensinar.
– Esses chineses andam depressa.
Guittou concorda em que o asno e a carroça fiquem provisoriamente no quintal. Tudo muito bem para nosso primeiro dia livre. À noite, todos os seis ao redor da mesa de trabalho, comemos uma boa sopa de legumes feita por Julot, e um bom prato de macarrão.
– Um de cada vez vai lavar a louça e fazer a limpeza da casa – diz Guittou.
Essa refeição em comum é o símbolo de uma primeira pequena comunidade cheia de calor. Esta sensação de se saber ajudado nos primeiros passos dados na vida livre é bastante reconfortante. Cuic, o maneta e eu somos real e plenamente felizes. Temos um teto, uma cama, amigos generosos que, em sua pobreza, encontraram nobreza bastante para nos ajudar. Que pedir de melhor?
– Que quer fazer esta noite, Papillon? – diz-me Guittou. – Quer ir à cidade, a esse bar onde vão todos os foragidos?
– Eu preferia ficar por aqui esta noite. Vá, se você quiser, não se preocupe por mim.
– Sim, eu vou, pois preciso encontrar uma pessoa.
– Eu ficarei com Cuic e o maneta.
Petit-Louis e Guittou se vestiram, engravataram-se e foram para o centro. Só Julot ficou, para terminar alguns pares de sapatos. Meus camaradas e eu damos uma volta pelas ruas próximas para conhecer o bairro. Tudo aqui é hindu. Muito poucos negros, quase nenhum branco, alguns raros restaurantes chineses.
Penitence River (é o nome do bairro) é um canto das Índias ou de Java. As moças são admiravelmente belas e os velhos usam longos mantos brancos. Muitos andam com os pés nus. É um bairro pobre, mas todo mundo está vestido limpamente. As ruas são mal iluminadas, os bares onde se come e bebe estão cheios de gente, por todo lado há música hindu.
Um negro lustroso, vestido de branco e engravatado, me detém:
– O senhor é francês?
– Sim.
– É um prazer encontrar um compatriota. Quer aceitar um gole?
– Se o senhor quiser, mas estou com dois amigos.
– Não tem importância. Eles falam francês?
– Falam.
Eis-nos os quatro instalados numa mesa de bar, junto da calçada. Esse martiniquenho fala um francês mais elegante do que o nosso. Diz para tomarmos cuidado com os negros ingleses porque, diz ele, são todos mentirosos. “Não são como nós, os franceses: nós temos palavra, eles não.”
Sorrio comigo mesmo ao ver esse negro do Sudão dizer “nós os franceses” e, depois, sinto-me realmente perturbado. Perfeitamente, esse senhor é um francês, um francês mais puro do que eu, penso, pois reivindica sua nacionalidade com calor e fé. Ele é capaz de se deixar matar pela França, eu não. Portanto, é mais francês do que eu. Eu sou o comum.
– É um prazer encontrar um compatriota e falar minha língua, pois falo muito mal o inglês.
– Eu me exprimo correntemente em inglês. Se lhe puder ser útil, estou à sua disposição. Está há muito tempo em Georgetown?
– Oito dias, não mais.
– De onde veio?
– Da Guiana Francesa.
– Impossível! É um fugitivo ou um guarda da penitenciária que quer se passar para De Gaulle?
– Não. Sou um fugitivo.
– E seus amigos?
– Também.
– Senhor Henri, não quero saber o seu passado, é o momento de ajudar a França e de se redimir. Eu estou com De Gaulle e espero embarcar para a Inglaterra. Vá me ver amanhã no Martiner Club, aqui está o endereço. Ficarei feliz se o senhor se juntar a nós.
– Como é seu nome?
– Homère.
– Sr. Homère, não posso me decidir assim de repente, tenho primeiro que me informar sobre minha família e, também, antes de tomar uma decisão tão séria, preciso analisar a situação friamente. Na verdade, St. Homère, a França me fez sofrer muito, tratou-me de modo desumano.
O martiniquenho, com uma flama e um calor admiráveis, procura me convencer com todo o seu coração. É realmente emocionante escutar os argumentos desse homem em favor da França.
Muito tarde, voltamos para casa e, deitado, penso em tudo que me disse esse grande francês. Preciso refletir seriamente sobre sua proposta. Afinal de contas, os tiras, os dedos-duros, os imbecis, a administração penitenciária, isso não é a França. Sinto, bem dentro de mim, que não deixei de amá-la. E dizer que há boches por toda a França! Meu Deus, como devem estar sofrendo os meus e que vergonha para todos os franceses!
Quando acordo, o asno, a carroça, o porco, Cuic e o maneta desapareceram.
– Então, meu chapa, dormiu bem? – perguntam Guittou e seus amigos.
– Sim, obrigado.
– Olhe, quer café com leite ou chá? Café e fatias de pão com manteiga?
– Obrigado – enquanto como, fico olhando eles trabalharem.
Julot prepara a massa de balata no tamanho e medida necessários, põe os pedaços duros na água quente e amassa até ficar mole.
Petit-Louis prepara pedaços de tecido e Guittou faz as solas.
– Vocês produzem muito?
– Não. Trabalhamos para ganhar 20 dólares por dia. Com 5 pagamos o aluguel e a comida. Restam 5 para cada um, para gastos variados, para se vestir, etc.
– Vendem tudo?
– Não. Às vezes é preciso que um de nós saia vendendo sapatos e vassouras nas ruas de Georgetown. É duro, a pé, em pleno sol, sair vendendo mercadoria.
– Se for preciso, eu vou de boa vontade. Não quero ser um parasita aqui. Preciso contribuir para ganhar comida.
– Está bem, Papi.
Passeei o dia inteiro pelo bairro hindu de Georgetown. Vejo um grande cartaz de cinema e sinto um desejo louco de ouvir e ver, pela primeira vez em minha vida, um filme falado, em cores. Vou pedir a Guittou que me traga ao cinema esta noite. Andei pelas ruas de Penitence River a manhã toda. A polidez das pessoas me agradou enormemente. Eles têm duas qualidades: são limpos e muito educados. Este dia passado sozinho nas ruas desse bairro de Georgetown é para mim ainda mais grandioso do que minha chegada a Trinidad, há nove anos.