– Bando de miseráveis!
Era só o que faltava para desencadear os gritos de todo mundo: “Assassinos! Porcos! Sujos!” Mais ameaçam atirar em nós se não nos calarmos, mais a gente berra, quando, de repente, o comandante grita:
– Mandem o vapor!
Dois marujos giram umas rodas e jatos de vapor caem sobre nós com uma potência tal, que, em menos de segundos, todo mundo está com a barriga no chão. Os jatos de vapor são projetados à altura do peito. Um pavor coletivo se apossa de todos. Os queimados não ousam se queixar; isso não dura mais de um minuto, mas aterroriza todo mundo.
– Espero que tenham compreendido, não é, seus cabeças-duras? Ao menor incidente, mando vapor. Entendido? Levantem-se!
Só três homens ficaram realmente queimados. São conduzidos à enfermaria. O flagelado é recolocado junto conosco. Seis anos depois, morreria numa tentativa de fuga comigo.
Durante estes dezoito dias de viagem, temos tempo para nos informar ou para tentar formar uma visão do degredo. Nada será como imaginamos, apesar de Julot ter procurado informar-nos o melhor possível. Por exemplo, já sabemos que Saint-Laurent-du-Maroni é um povoado a 120 quilômetros do mar, à margem de um rio chamado Maroni. Julot nos explica:
– É neste povoado que está a penitenciária, o centro do degredo de forçados. Neste centro é feita a triagem por categoria. Os desterrados vão diretamente para 50 quilômetros dali, uma penitenciária chamada Saint-Jean. Os forçados são imediatamente classificados em três grupos:
– Os muito perigosos, que serão chamados na hora da chegada e colocados nas celas do quartel disciplinar, na espera de sua transferência para as Ilhas da Salvação. Ficam aí internados para o resto da vida. Estas ilhas estão a 500 quilômetros de Saint-Laurent e a 100 quilômetros de Caiena. Elas se chamam: 1) Ilha Royale; 2) a maior, que é a Ilha de Saint-Joseph, onde está a reclusão do degredo; e 3) a Ilha do Diabo, a menor de todas. Os forçados não vão para a Ilha do Diabo, salvo exceções muito raras. Os homens da Ilha do Diabo são forçados políticos, em geral.
Vêm a seguir os perigosos de segunda categoria: ficarão no campo de Saint-Laurent e serão obrigados a fazer trabalhos de jardinagem e cultivar a terra. Toda vez que houver necessidade, são enviados para campos muito duros: Campo Florestal, Charvin, Cascata, Enseada Vermelha, Quilômetro 42, chamado “o campo da morte”.
– Enfim, a categoria normaclass="underline" são empregados na administração, nas cozinhas, na limpeza do povoado e do campo ou em diversos trabalhos: oficina, marcenaria, pintura, forja, eletricidade, colchoaria, alfaiataria, lavanderia, etc.
– Portanto, a hora H é a da chegada: se a gente é chamado e levado para a cela, é porque vai ser internado nas ilhas, o que tira toda esperança de evasão. Só há uma chance: ferir-se depressa, abrir os joelhos ou a barriga, para ir ao hospital e dali se evadir. É preciso evitar, a qualquer preço, ir para as ilhas. Outra esperança: se o barco que deve levar os internados para as ilhas não estiver pronto para fazer a viagem, então é preciso largar a gaita e oferecer alguma coisa ao enfermeiro. Este nos aplicará uma injeção de essência de terebintina numa articulação ou passará um cabelo molhado em urina na pele, para que ela se infeccione. Ou nos dará enxofre para respirar e depois dirá ao médico que estamos com 40 graus de febre. Durante estes poucos dias de expectativa, é preciso ir para o hospital, seja de que maneira for.
– Se a gente não é chamada e é deixada com os outros nos barracões, no campo, então há tempo para agir. Neste caso, não se deve procurar um trabalho no interior do campo. É preciso pagar ao administrador para arranjar no povoado um lugar de limpador de privadas, de varredor, ou ser empregado na serraria de uma empresa civil. Saindo para trabalhar fora da penitenciária e voltando a cada tarde ao campo, a gente tem tempo para entrar em contato com forçados libertos, que vivem no povoado, ou com chineses, para que eles preparem a fuga. É preciso evitar os campos em torno do povoado: todo mundo morre ali depressa; há campos onde ninguém resistiu três meses. Em pleno mato, os homens são obrigados a cortar 1 metro cúbico de madeira por dia.
Julot ruminou para nós todas essas informações preciosas, ao longo da viagem. Quanto a ele, está preparado. Sabe que vai diretamente para o calabouço, por ter tentado fugir. Por isso, tem uma faquinha, quase um canivete, dentro do seu canudo. Na chegada, vai tirar a faquinha e abrir o joelho. Ao descer do navio, cairá da escada na frente de todo mundo. Acha que será transportado diretamente do cais para o hospital. Exatamente isso, aliás, é o que acontecerá.
Os vigilantes se revezaram para ir trocar de roupa. Voltam, cada um por sua vez, vestidos de branco, com um capacete colonial no lugar do quépi. Julot diz: “Estamos chegando”. Faz um calor de matar, porque fecharam as vigias. Através delas, a gente vê o mato. Estamos, portanto, em Maroni. A água é lamacenta. Esta floresta virgem é verde e impressionante. Pássaros alçam vôo, perturbados pelo apito do navio. Vamos muito devagar, o que permite observar calmamente a vegetação escura, exuberante e densa. Vemos as primeiras casas de madeira, com seu teto de folha de zinco. Negros e negras estão na frente das portas, espiando o navio passar. Já se acostumaram a vê-lo descarregar seu carregamento humano e é por isso que não fazem nenhum gesto de boas-vindas à sua passagem. Três toques de apito e ruídos de hélice nos informam que estamos chegando; depois cessa todo o ruído da máquina. Seria possível ouvir o vôo de uma mosca.
Ninguém fala. Julot tem sua faca aberta e corta sua calça no joelho, rasgando as bordas das costuras. Só daqui a pouco que ele deverá cortar seu joelho – para não deixar um rastro de sangue. Os vigilantes abrem a porta da cela e somos enfileirados três a três. Estamos na quarta fileira, Julot entre Dega e mim. Subimos para a coberta. São 14 horas. Um sol de fogo surpreende meu crânio raspado e meus olhos. Alinhados sobre a coberta, somos dirigidos para a passarela. Em uma parada da coluna, provocada pela entrada dos primeiros na passarela, sustento o saco de Julot em suas costas e ele, com as duas mãos, arranha a pele de seu joelho, afunda a faca e corta, com um só golpe, 7 a 8 centímetros de carne. Passa a faca pra mim e agüenta sozinho seu saco. No momento em que entramos na passarela, cai de propósito e rola até embaixo, É levantado pela gente que está perto e, sendo visto ferido, chamam padioleiros. O roteiro se desenvolve como ele tinha previsto: vai embora carregado numa padiola por dois homens.
Uma multidão variada nos olha, curiosa. Pretos, mulatos, índios, chineses, brancos na miséria (que devem ser forçados libertos) examinam cada um dos que chegam à terra e se enfileiram atrás dos outros. Do outro lado, vigilantes, civis bem vestidos, mulheres na moda de verão, rapazes com o capacete colonial na cabeça. Também eles olham os recém-chegados. Quando já somos duzentos, o comboio se move. Marchamos durante quase dez minutos e chegamos diante de uma porta de tábuas, muito alta, onde está escrito: “Penitenciária de Saint-Laurent-du-Maroni. Capacidade: 3 000 homens”. A porta se abre e a gente entra por fileiras de dez. “Um, dois; um, dois, marche!” Numerosos forçados assistem à nossa chegada. Estão empoleirados nas janelas ou sobre grandes pedras, para ver melhor.
Chegando ao meio do pátio, ouvimos a ordem gritada:
– Alto! Coloquem seus sacos na frente de vocês. Distribuam os chapéus, vocês aí!
Dão a cada um de nós um chapéu de palha, muito necessário: ou três já caíram de insolação. Dega e eu nos olhamos, porque um guarda agaloado pegou uma lista entre as mãos. Pensamos no que disse Julot. Chamam Guittou: “Por aqui!” Ele é enquadrado por dois vigilantes e vai embora. Suzini, a mesma coisa; Girassol, igualmente.