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Reunidos no galpão de uma casa, onde penduraram cinco redes de lã e colocaram mesa e cadeiras, fomos lambuzados com manteiga de cacau da cabeça aos pés. Nem um centímetro de carne viva foi esquecido. Mortos de fome e de canseira, nosso jejum tão prolongado provocou-nos desidratação, e essa boa gente do litoral sabe que precisamos dormir, mas também comer em pequenas quantidades.

Enquanto estamos bem acomodados nas redes, dorme, não dorme, as enfermeiras improvisadas vão enfiando bocados de comida em nossas bocas, como se fôssemos criancinhas. Eu estava tão entregue, tão completamente desprovido de força quando me estenderam na rede, minhas chagas em carne viva bem besuntadas de manteiga de cacau, que me sentia como que derretendo, dormindo, comendo, bebendo, sem me dar conta exatamente do que se passava.

As primeiras colheradas de um pirão parecido com a nossa tapioca não foram aceitas pelo meu estômago vazio. Isso aconteceu também com os outros. Todos nós vomitamos, várias vezes, uma parte ou toda a comida que as mulheres introduziam em nossas bocas.

Os habitantes dessa aldeia são muito pobrezinhos. Contudo, cada um deles, sem exceção, contribui para nos ajudar. Dentro de três dias, graças aos cuidados dessa boa gente e graças à nossa juventude, estamos quase de pé. Deixamos as redes durante longas horas e, sentados no rancho coberto de folhas de coqueiro que proporcionam uma sombra fresca, meus camaradas e eu conversamos com esse povo. Não são bastante ricos para nos vestir todos de uma só vez. Formaram pequenos grupos de ajuda. Um se ocupa sobretudo de Guittou, outro de Deplanque, etc. Mais ou menos umas dez pessoas cuidam de mim.

Nos primeiros dias, eles nos vestiram com algumas roupas usadas, mas rigorosamente limpas. Agora, cada vez que podem, compram para nós uma camisa nova, uma calça, uma cinta, um par de chinelos. Entre as mulheres que tratam de mim estão algumas moças muito novas, de tipo índio mas já misturado com sangue espanhol ou português. Uma se chama Tibisay e a outra Nenita. Compraram para mim uma camisa, uma calça e um par de chinelos, que elas chamam aspargate. É uma sola de couro sem salto, com um tecido trançado para cobrir o pé. Só o peito do pé fica coberto, os dedos permanecem de fora e uma tira do tecido prende o calçado ao calcanhar.

– Não é preciso perguntar de onde vocês vêm. Pelas tatuagens, sabemos que vocês são fugitivos da penitenciária francesa.

Isso me emociona ainda mais. Como! Sabendo que somos homens condenados por delitos graves, evadidos de uma prisão cuja severidade eles conhecem pelos livros ou jornais, essas humildes criaturas acham natural nos socorrer e nos ajudar? Vestir alguém quando a gente é rica ou abastada, dar de comer a um estrangeiro que tem fome quando nada falta em casa para a família e para si próprio, é de qualquer maneira uma demonstração de bondade. Mas dividir em dois um pedaço de broa de milho ou de mandioca, espécie de torta cozida no forno, preparada por suas próprias mãos, e que não é bastante para si mesmo e para os seus, repartir a refeição frugal, que mais serve de subalimentação que de nutrição, com um estrangeiro e, ainda mais, um fugitivo da justiça, isto é admirável!

Hoje de manhã, toda a gente, homens e mulheres, está silenciosa. Eles parecem estar contrariados e preocupados. Que se passa? Tibisay e Nenita estão perto de mim. Pela primeira vez nestes últimos quinze dias pude fazer a barba. Já há oito dias somos hóspedes dessa gente que tem o coração na mão. Havendo-se formado uma pele muito fina sobre as minhas queimaduras, arrisquei-me a raspar a barba. Por causa da barba, as mulheres só faziam uma vaga idéia da minha idade. Agora estão satisfeitas de verem que sou jovem e o dizem sem rebuços. Tenho 35 anos, mas aparento só 28 ou trinta. Sim, estou percebendo que todas essas mulheres e esses homens hospitaleiros estão preocupados por nossa causa.

– Que está acontecendo? Fale, Tibisay, que foi que houve?

– Estamos esperando as autoridades de Güiria, uma aldeia vizinha de Irapa. Aqui não há chefe civil (comissário), mas, não se sabe como, a polícia soube que vocês estão aqui, e está para chegar.

Uma preta forte e bonita se aproxima, acompanhada por um moço de torso nu, calça branca enrolada nos joelhos, de corpo hercúleo e bem proporcionado. Chama-se Negrita – é um modo carinhoso de chamar as mulheres de cor, muito usado na Venezuela, onde não existe nenhum preconceito racial ou religioso.

– Señor Enriquez - diz Negrita -, a polícia vai chegar. Não sei se é para seu bem ou para seu mal. Você não quer se esconder por algum tempo na montanha? Este meu irmão pode levá-lo para uma casinha onde ninguém poderá encontrá-lo. Tibisay, Nenita e eu levaremos todo dia comida para você e comunicaremos as notícias.

Muito emocionado, quero beijar a mão dessa boa mulher, mas ela não deixa e, com muito gentileza, me dá um beijo na face.

Chegam uns cavaleiros a galope. Todos trazem um machete, espécie de facão que serve para cortar a cana-de-açúcar e que fica pendurado no lado esquerdo da cinta, como se fosse uma espada; do lado direito, um revólver dentro de sua capa. Eles apeiam. Um homem de cara mongólica, olhos oblíquos de índio, pele bronzeada, alto e seco, de seus quarenta anos, com um grande chapéu de palha de arroz na cabeça, aproxima-se de nós.

– Bom dia. Eu sou o chefe civil (o delegado de polícia).

– Bom dia, meu senhor.

– Vocês aí, por que não avisaram antes que tinham cinco fugitivos de Caiena? Já faz oito dias que estão aqui, pelo que me disseram.

– É que estávamos esperando que pudessem andar e estivessem curados das queimaduras.

– Viemos buscá-los e levá-los para Güiria. Um caminhão vai chegar mais tarde.

– Um cafezinho?

– Pois não, muito obrigado.

Sentados em círculo, todos tomam café. Olho para o comissário da polícia e seus ajudantes. Eles não têm cara de ruins. Tenho a impressão de que estão obedecendo a ordens, contrariados.

– Vocês são evadidos da Ilha do Diabo?

– Não, viemos de Georgetown, na Guiana Inglesa.

– Por que não ficaram por lá?

– A vida lá é muito dura.

Sorrindo, ele diz:

– Vocês pensaram que estariam melhor aqui do que com os ingleses?

– É verdade, porque somos latinos que nem vocês.

Um grupo de sete ou oito homens se aproxima do nosso círculo. À sua frente está um homem de cinqüenta anos, cabelos brancos, 1 metro e 75 ou mais de altura, pele cor de chocolate claro. Olhos imensos, negros, denotando inteligência e ânimo pouco comuns. Sua mão direita está colocada sobre o cabo de um machete pendurado na cinta.

– Chefe, que vai fazer com esses homens?

– Vou levá-los para a prisão de Güiria.

– Por que não os deixa viver aqui conosco? Cada família tomará conta de um.

– Não é possível, é ordem do governador.

– Mas eles não praticaram nenhum delito em território venezuelano.

– Sei disso. Mas, apesar de tudo, são homens muito perigosos; para terem sido condenados ao presídio de Caiena, devem ter cometido crimes muito graves. Além disso, são fugitivos sem documentos de identidade e a polícia francesa certamente vai pedir a extradição deles, quando souber que estão na Venezuela.

– Nós queremos que fiquem aqui com a gente.

– Não é possível, é ordem do governador.

– Tudo é possível. Que é que o governador sabe da vida desses desgraçados? Um homem nunca está completamente perdido. Qualquer que seja o mal que ele possa ter feito no passado, em certo momento da sua vida ele tem uma chance de se recuperar e de se transformar num homem bom e útil à sociedade. Não é verdade, digam vocês todos?