– É verdade – respondem os homens e as mulheres em coro. – Deixem os coitados aqui com a gente, vamos ajudá-los a refazer a vida deles. Em oito dias, já os conhecemos bem e estamos certos de que são bons rapazes.
– Gente mais civilizada do que nós colocou eles no calabouço, para que não pudessem mais praticar o mal – diz o comissário.
– Chefe, o que é que o senhor chama de civilização? O senhor pensa que, porque nós temos elevadores, aviões e trens subterrâneos, isso prova que os franceses são mais civilizados do que essa gente que nos recebeu e tratou? Pois fique sabendo que na minha opinião há mais civilização humana, mais riqueza de alma, mais compreensão em cada membro desta comunidade, que vive com simplicidade no meio da natureza, embora desprovida dos benefícios da civilização mecânica. Mas, se eles não têm o conforto do progresso, têm o sentido da caridade cristã muito mais desenvolvido que os pretensos civilizados do mundo. Prefiro um analfabeto deste povoado a um doutor em letras da Sorbonne de Paris, se este tiver um dia a alma do promotor que me fez condenar. O primeiro é sempre um homem, o segundo esqueceu que é.
– Eu compreendo, mas tenho que executar ordens. Está chegando o caminhão. Por favor, me ajude, tenha uma atitude sensata, para que tudo se passe sem incidentes.
Cada grupo de mulheres abraça aquele de que elas trataram. Tibisay, Nenita e Negrita me abraçam chorando. Cada homem nos aperta a mão, demonstrando assim o seu sentimento de tristeza pela nossa volta à prisão.
Até logo, gente de Irapa, gente nobre que teve a coragem de enfrentar e censurar as próprias autoridades para defender uns pobres-diabos até ontem desconhecidos. O pão que comi com vocês, o pão que vocês tiveram a coragem de tirar da própria boca para nos dar, esse pão, símbolo da fraternidade humana, foi para mim o sublime exemplo dos tempos antigos: “Não matar, fazer o bem aos que sofrem mais, mesmo à custa de privações. Ajudar sempre quem é mais infeliz do que você”. E, se mais tarde eu alcançar a liberdade, ajudarei os outros cada vez que puder, conforme me ensinaram os primeiros venezuelanos que encontrei.
E encontrei muitos outros depois.
Duas horas mais tarde, chegamos a uma grande aldeia, porto de mar que tem a pretensão de ser cidade: chama-se Güiria. O chefe civil (espécie de prefeito de departamento na França) nos entrega ele mesmo ao comandante da polícia. No comissariado; não nos tratam mal, mas nos submetem a longo interrogatório; e o encarregado, sujeito tapado, não quer de modo nenhum acreditar que tenhamos vindo da Guiana Inglesa, onde éramos livres. Além disso, quando nos pede para explicar o motivo da nossa chegada à Venezuela num estado de nudez e de esgotamento, depois de uma viagem tão curta de Georgetown ao golfo de Paria, ele diz que estamos caçoando dele com a nossa história do furacão.
– Dois grandes transportes de banana se perderam totalmente nesse tornado, um cargueiro carregado de minério de bauxita afundou com toda a equipagem e vocês, numa embarcação de 5 metros, aberta às intempéries, conseguiram se salvar? Quem vai acreditar nessa história? Nem mesmo o mendigo débil mental que pede esmola no mercado. Vocês estão mentindo, há qualquer coisa suspeita nesse negócio.
– O senhor pode pedir informações em Georgetown.
– Não quero bancar o idiota diante dos ingleses.
Esse escrivão ou investigador, sujeito cretino e cabeçudo, incrédulo e cheio de si, faz não sei que espécie de relatório, destinado não sei a quem. De qualquer maneira, certa manhã somos acordados às 5 horas, acorrentados, carregados num caminhão, com destino desconhecido.
Conforme expliquei, o porto de Güiria fica no golfo de Paria, diante de Trinidad. Tem a vantagem de estar na proximidade da foz do Orinoco, rio enorme, quase tão grande como o Amazonas.
Acorrentados num caminhão, onde estamos cinco camaradas mais dez policiais, rodamos para Ciudad Bolivar, importante capital do Estado do mesmo nome. A viagem, toda feita em estradas de terra, foi muito cansativa. Polícias e presos, apertados, sacudidos dentro do caminhão, pulavam mais do que numa montanha russa. A viagem durou cinco dias. À noite, dormíamos dentro do próprio caminhão e, de madrugada, partíamos novamente, numa corrida louca para um destino desconhecido.
A mais de 1 000 quilômetros do mar, numa floresta virgem cortada por uma faixa de estrada que vai de Ciudad Bolivar a El Dorado, foi que terminamos nossa viagem arrasadora.
Tanto prisioneiros como soldados se achavam bastante machucados quando chegamos à povoação de El Dorado.
Mas o que é El Dorado? A princípio, foi a esperança dos conquistadores espanhóis: vendo que os índios vindos dessa região traziam ornamentos de ouro, acreditaram cegamente que naquele lugar havia uma montanha de ouro, ou, pelo menos, metade ouro, metade terra. Resultado: hoje, El Dorado não é mais que uma aldeia à beira de um rio cheio de caribes ou piranhas, peixes carnívoros que em alguns minutos devoram um homem ou um animal; um rio também repleto de peixes-elétricos, ali chamados tembladores, que, girando em volta da sua presa, homem ou bicho, matam a vítima por meio de descargas elétricas e, a seguir, chupam o corpo em decomposição. No meio desse rio há uma ilha e, bem no centro, um verdadeiro campo de concentração. São as galés venezuelanas.
Essa colônia de trabalhos forçados é a coisa mais dura que já vi em toda a minha vida, a mais selvagem e a mais desumana, onde as bordoadas chovem constantemente sobre os presos. É um quadrado de apenas 150 metros de lado, cercado por fios de arame farpado. Cerca de quatrocentos homens dormem ali ao relento, pois não há mais que algumas folhas de zinco servindo de abrigo em volta do campo.
Sem que nos tenham dado qualquer palavra de explicação, sem justificarem essa decisão, somos incorporados ao presídio de El Dorado às 3 horas da tarde, quando ali chegamos, esgotados pela viagem, sempre acorrentados no caminhão. Às 3 e meia, sem que se faça a chamada ou o registro dos nossos nomes, os guardas acenam para nós e entregam uma pá para dois de nós e uma picareta para os outros três. Cercados por cinco soldados, de fuzil e nervo de boi na mão, comandados por um cabo de esquadra, somos levados, sob ameaça de pancadas, ao local de trabalho. Compreendemos logo que é uma espécie de demonstração de força, encenada pela guarda dessa penitenciária. Seria perigosíssimo não obedecermos, no momento. Mais tarde, veremos o que se pode fazer.
Chegando ao lugar onde os sentenciados estão trabalhando, mandam-nos abrir uma trincheira ao lado da estrada que estão construindo na floresta virgem. Obedecemos sem dizer palavra e trabalhamos sem levantar a cabeça, cada um de acordo com sua capacidade. Isso não nos impede de ouvir os insultos e as pancadas selvagens que os demais prisioneiros recebem a todo momento. Nenhum do nosso grupo recebe uma só chicotada. Essa sessão de trabalho forçado, que nos proporcionaram logo após a nossa chegada, era sobretudo destinada a nos fazer ver como são tratados os prisioneiros.
Era um sábado. Depois do trabalho, cobertos de suor e de poeira, fomos incorporados a esse campo de prisioneiros, sem o menor registro ou formalidade.
– Os cinco caienenses, por aqui – é o cabo dos presos que está falando. É um mestiço de 1 metro e 90 de altura. Tem o seu nervo de boi na mão. Esse imundo brutamontes é o encarregado da disciplina no recinto do campo.
Indicaram-nos o lugar onde devemos pendurar as redes, perto da porta de entrada do campo, ao ar livre. Mas ali, pelo menos, há um teto de folhas de zinco e, assim, estaremos mais ou menos abrigados da chuva e do sol.
A grande maioria dos prisioneiros é colombiana e os restantes são venezuelanos. Nenhum dos campos disciplinares das penitenciárias francesas pode se comparar com o horror desta colônia de trabalho. Um burro morreria com os maus-tratos suportados por esses homens. Contudo, quase todos aparentam saúde, porque há uma coisa: a alimentação destinada aos sentenciados, aqui, é muito farta e apetitosa.