Nosso grupo reúne-se num pequeno conselho de guerra. Se um de nós for espancado por um soldado, o melhor a fazer é parar de trabalhar, debruçar-se no chão e, seja qual for o tratamento infligido, não se levantar. De qualquer maneira, terá que aparecer uma autoridade, à qual poderemos perguntar como e por que estamos neste campo de trabalhos forçados sem ter cometido qualquer delito. Os dois libertos, Guittou e Barrière, dizem que vão pedir para serem devolvidos à França. A seguir, decidimos chamar o cabo dos presos. Sou eu que devo falar com ele. Ele é chamado de “Negro Blanco”. Guittou vai procurá-lo. O carrasco chega, sempre de chicote na mão. Nós cinco, franceses, colocamo-nos em círculo em volta dele.
Sou eu quem toma a palavra:
– Queremos dizer a você umas poucas palavras: comprometemo-nos a não cometer jamais qualquer infração ao regulamento, assim você não terá motivo para esbordoar qualquer um de nós. Mas, como reparamos que você agride qualquer um sem o menor motivo, nós chamamos você para avisar que, no dia que você espancar um de nós, é um homem morto. Está entendido?
– Sim – diz o Negro Blanco.
– Mais uma advertência.
– O que é? – diz ele, com voz rouca.
– Se você tiver que repetir o que acabamos de dizer, diga isso a um oficial e não a um soldado.
– Está entendido – e ele se retira.
Esta cena se passa no domingo, dia de folga dos presos. Aparece um sujeito cheio de galões.
– Como é que você se chama? – diz ele para mim.
– Papillon.
– É você o chefe dos caienenses?
– Somos cinco e todos são chefes.
– Por que foi você que tomou a palavra para falar com o cabo dos presos?
– Porque sou eu quem fala melhor espanhol.
Agora é um capitão da guarda nacional que fala comigo. Diz que não é ele o comandante da guarda. Há dois chefes mais graduados que ele, mas não estão aqui. Desde que chegamos, é ele quem está no comando. Os dois mais graduados chegarão terça-feira.
– Você ameaçou, em seu nome e no dos seus companheiros, matar o cabo dos presos se ele batesse num de vocês. É verdade?
– É verdade, e vocês têm que nos levar a sério. Mas também disse a ele que não daríamos qualquer pretexto para justificar um castigo corporal. O senhor sabe, capitão, que nenhum tribunal nos condenou, pois não cometemos nenhum delito na Venezuela.
– Nada sei a respeito. Vocês chegaram no campo sem qualquer papel, apenas com uma nota do diretor que está na aldeia: “Pôr esses homens para trabalhar assim que chegarem”.
– Pois, senhor capitão, já que é militar, deve ser bastante justo para, enquanto aguarda a chegada dos chefes, dar ordem aos soldados para nos darem um tratamento diferente do que dão aos outros presos. Afirmo mais uma vez que não somos nem podemos ser condenados, porque não cometemos nenhum delito na Venezuela.
– Vou dar ordens nesse sentido. Espero que não tenham me enganado.
Tenho tempo de observar os presos toda a tarde desse primeiro domingo. A primeira coisa que me espanta é que todos estão bem de saúde. Em segundo lugar, as pancadas se tornaram tão rotineiras, que eles se acostumaram com elas; hoje, por exemplo, domingo, dia de descanso, em que poderiam facilmente evitar as bordoadas comportando-se bem, parece que eles encontram um prazer masoquista em brincar com o fogo. Não param de fazer coisas proibidas: jogar dados, ter contato sexual com uns jovens nas privadas, roubar um companheiro, dizer obscenidades às mulheres que vêm da aldeia trazer doces ou cigarros aos presos. Elas também fazem trocas. Uma cesta trançada, um objeto esculpido, por algum dinheiro ou pacotes de cigarros. Pois bem, há alguns presos que dão um jeito de pegar através do arame farpado aquilo que a mulher oferece para vender e saem correndo sem lhe entregar o objeto negociado, escondendo-se no meio dos outros. Conclusão: os castigos corporais são aplicados tão indiscriminadamente e por motivos fúteis, que o couro dos presos está completamente curtido pelos chicotes; reina o terror no campo de concentração, sem qualquer benefício para a ordem ou a sociedade, e a brutalidade de nada serve para reeducar esses desgraçados.
Contudo, a reclusão na Ilha de Saint-Joseph, com o seu silêncio obrigatório, é bem mais terrível do que isto. Aqui, o medo é momentâneo e o fato de poder conversar à noite, fora das horas de trabalho, bem como a alimentação, rica e abundante, permitem que um homem chegue ao fim da sua pena, que em nenhum caso pode ultrapassar cinco anos.
Passamos o domingo fumando e tomando café, sempre conversando só entre nós. Alguns colombianos se aproximam, mas nós os afastamos, com boas maneiras porém com firmeza. É preciso que nos considerem prisioneiros à parte, do contrário estamos fritos.
No dia seguinte, segunda-feira, às 6 horas, depois de haver comido fartamente, vamos para o trabalho com os outros. Eis como se prepara o trabalho: duas fileiras de homens, frente a frente, cinqüenta prisioneiros, cinqüenta soldados. Um soldado para cada preso. Entre cada fileira, cinqüenta ferramentas: picaretas, pás ou machados. As duas filas de homens se observam: os prisioneiros, angustiados, e os soldados, nervosos e sádicos.
O sargento grita: “Fulano, picareta!”
O desgraçado se abaixa às pressas e, no momento em que agarra a picareta para lançá-la ao ombro e partir correndo para o trabalho, o sargento grita: “Número”, o que eqüivale a dizer: “Soldado, um, dois, etc.” O soldado pula atrás do coitado e’ o açoita com seu nervo de boi. Essa cena horrorosa repete-se duas vezes por dia. No caminho entre o campo e o local de trabalho, a gente tem a impressão de que são tropeiros, tocando seus burros a chicote.
Estávamos gelados de pavor e apreensivos, aguardando a nossa vez. Felizmente, conosco foi diferente.
– Os cinco caienenses, por aqui! Os mais moços peguem estas picaretas e vocês, os mais velhos, estas duas pás.
Sem correr mas em marcha batida, vigiados por quatro soldados e um cabo, vamos para o campo de trabalho, uma clareira na floresta. Esta jornada foi mais longa e mais desesperadora que a primeira. Alguns homens especialmente manjados, no limite das suas forças, gritavam como loucos e imploravam de joelhos que não lhes batessem mais. À tarde, deviam limpar os restos de uma queimada, juntando numa só pilha os tocos e os galhos ainda fumegantes. Outros deviam roçar atrás deles. E, assim, umas oitenta ou cem fogueiras já quase consumidas deviam se transformar num único braseiro no centro do campo. A golpes de nervo de boi, cada soldado espancava seu prisioneiro para que recolhesse os resíduos e os levasse correndo para o meio da área. Essa corrida diabólica provocava em alguns deles verdadeira crise de loucura e, na sua precipitação, eles agarravam às vezes os galhos pelas pontas ainda em brasa. As mãos queimadas, estupidamente açoitados, pisando descalços sobre galhos ou brasas ainda fumegantes, essa fantástica cena durou três horas. Nenhum de nós foi convidado a participar da limpeza dessa clareira recém-desmoitada. Foi melhor assim, porque havíamos decidido, trocando curtas frases, sem levantar a cabeça, enquanto trabalhávamos na enxada, que saltaríamos sobre os cinco praças, inclusive os cabos, que os desarmaríamos e daríamos tiros nessa súcia de brutos.
Hoje, terça-feira, não saímos para o trabalho. Fomos chamados ao escritório dos dois majores da guarda nacional. Os dois oficiais estão muito surpresos por estarmos em El Dorado sem qualquer documento que comprove a decisão de algum tribunal. De qualquer maneira, eles nos prometem pedir amanhã explicações ao diretor da colônia penal.
Não demorou muito. Esses dois majores da guarda da penitenciária são certamente muito severos, pode-se mesmo dizer que exageram na repressão, mas são corretos, pois exigiram que o diretor da colônia viesse pessoalmente nos dar explicações.
Aqui está ele, diante de nós, acompanhado pelo seu cunhado, Russian, e pelos dois oficiais da guarda nacional.