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É muito raro que um homem resista a mais de oitenta golpes. A sorte que ele tem é de ser magro, pois, deitado de bruços, as pancadas não podem lhe atingir o fígado, órgão que rebenta se for atingido diretamente. É costume, depois dessa flagelação, em que as nádegas ficam retalhadas, jogar sal sobre a carne lanhada e deixar o homem esticado ao sol. Contudo, cobrem-lhe a cabeça com uma folha de bananeira ou outra planta, pois admitem que o homem morra de pancadas, mas não de insolação.

O Torto sai vivo desse suplício digno da Idade Média e, quando se levanta pela primeira vez, verifica, muito surpreso, que não está mais torto. As pancadas quebraram-lhe a soldadura mal feita e lhe colocaram a anca exatamente no lugar. Soldados e prisioneiros gritam “Milagre!”, ninguém compreende o que aconteceu. Nesse país supersticioso, acreditam que foi Deus que o recompensou por ter resistido dignamente às torturas. A partir desse dia, tiram-lhe os ferros e a bola. Passa a ser protegido e fica encarregado da distribuição de água aos trabalhadores forçados. Ele então se desenvolve fisicamente e, comendo bastante, transforma-se num rapaz grande e atlético.

A França veio a saber que os sentenciados fugidos trabalhavam na construção de estradas na Venezuela. Pensando que essas energias seriam melhor aproveitadas na Guiana Francesa, o Marechal Franchet d’Esperey foi enviado como embaixador especial para solicitar ao ditador – muito feliz com essa mão-de-obra gratuita – a devolução desses homens à França.

Gómez aceita e, em Puerto Cabello, um navio vem buscá-los. Aí acontecem brincadeiras terríveis e de mau gosto, pois há homens que procedem de outros campos de trabalho e não conhecem a história do Torto.

– Eh! Marcel, como vai?

– Quem é você?

– O Torto.

– Você está rindo, não deboche – respondiam todos os outros, vendo esse rapaz forte, bem aprumado, sobre pernas firmes.

O Torto, que era moço e brincalhão, durante todo o tempo que durou o embarque, não deixou de interpelar todos os seus conhecidos. E todos, hem entendido, não podiam compreender como o Torto se havia endireitado. De volta à Guiana, fiquei sabendo da história pela sua própria boca e outros presidiários confirmaram o episódio na Ilha Royale.

Evadido de novo em 1943, veio parar em El Dorado. Como já vivera na Venezuela – e certamente não contou que fora como prisioneiro -, arranjou logo o lugar de cozinheiro, substituindo Chapai”, que passou a jardineiro. Trabalhava na casa do diretor, na aldeia situada na outra margem do rio.

No escritório do diretor se achava o cofre e o dinheiro da colônia. Naquele dia, roubou 70 000 bolívares, que correspondiam então a mais ou menos 20 000 dólares. Foi isso que provocou a algazarra em nossa horta: o diretor, o cunhado do diretor, os dois majores da guarda nacional. O diretor queria nos mandar imediatamente para o campo de concentração. Os oficiais recusaram, talvez interessados no fornecimento de legumes e verduras. Conseguimos finalmente convencer o diretor de que nada sabíamos do caso; se tivéssemos sabido, teríamos fugido com o Torto, talvez, mas afinal de contas o nosso objetivo era ficar na Venezuela e não na Guiana Inglesa, único lugar para onde ele poderia ter fugido. Poucos dias depois, guiados pelos urubus que o devoravam, os policiais encontraram o seu cadáver a mais de 70 quilômetros dentro da mata, bem perto da fronteira inglesa.

A primeira versão, a mais cômoda, foi que ele fora assassinado pelos índios. Muito mais tarde, um homem foi preso em Ciudad Bolivar. Estava trocando notas de 500 bolívares, novas demais. O banco que havia entregue o dinheiro ao diretor da colônia penal de El Dorado anotara os números, o que comprovou que se tratava das mesmas notas. O sujeito confessou e deu o nome de dois cúmplices, que nunca foram encontrados. Essa foi a vida e foi assim que acabou meu bom amigo Gaston Duranton, alcunhado Torto.

Reservadamente, alguns oficiais mandaram uns prisioneiros procurar ouro e brilhantes no rio Caroni. Os resultados foram positivos, não espetaculares, mas suficientes para estimular as pesquisas. Na parte baixa da minha horta, dois homens trabalham o dia todo com a bateia, uma espécie de chapéu chinês invertido, a ponta para baixo e a beirada para cima. Enchem a bateia de terra e vão mexendo. Como o diamante é mais pesado que os demais elementos que o cercam, ele fica no fundo do “chapéu”. Já houve um morto: estava roubando seu “patrão”. Em conseqüência desse pequeno incidente, foram suspensos os trabalhos nessa “mina” clandestina.

No campo, há um sujeito com o torso todo tatuado. No pescoço está escrito: “Merda para o barbeiro”. É paralítico do braço direito. Sua boca torta e a língua quase sempre pendente e babosa indicam claramente que sofreu um ataque de hemiplegia. Onde foi que isso aconteceu? Ninguém sabe. Estava aqui antes da nossa chegada. O certo é que é um sentenciado ou um deportado que se evadiu. No peito está tatuado “Bat d’Af” (Batalhão Penitenciário da África). Esta tatuagem e a tal de “Merda para o barbeiro” que se lê na nuca comprovam, sem qualquer dúvida, que se trata de um duro.

Ele é chamado Picolino. pelos guardas e pelos presos. É bem tratado e recebe escrupulosamente a sua comida, três vezes ao dia, ganhando também cigarros. Seus olhos azuis são muito expressivos e seu olhar nem sempre é triste. Quando olha para alguém de quem gosta, suas pupilas brilham de alegria. Compreende tudo o que lhe dizem, mas não pode nem falar nem escrever: o braço direito paralisado não o permite, e na mão esquerda faltam o polegar e mais dois dedos. Esta ruína humana fica grudada nos fios de arame farpado, esperando para me ver passar com os legumes, pois é o caminho que tomo para ir à cantina dos oficiais. Por isso, toda manhã, quando passo com meus legumes, paro um pouco para conversar com Picolino. Encostado nos fios de arame, ele me olha com seus belos olhos azuis cheios de vida, brilhando num corpo quase morto. Eu lhe digo umas palavras amáveis e ele, com a cabeça ou as pálpebras, me faz compreender que “pegou” toda a conversa. Seu pobre rosto paralisado ilumina-se por um momento e seus olhos brilham, parecendo querer dizer muitas coisas. Levo sempre para ele alguns petiscos: uma salada de tomate, alface ou pepino, bem preparada com molho vinagrete, um pequeno melão ou um peixe assado na brasa. Ele não tem fome, porque a comida é abundante no presídio colombiano, mas assim pode variar um pouco o cardápio. Também sempre lhe dou alguns cigarros. Esta rápida visita ao Picolino se transformou em rotina, tanto que os soldados e os presos já estão chamando ele de “filho do Papillon”.

A LIBERDADE

É uma coisa esquisita, mas os venezuelanos são tão simpáticos, tão cativantes, que resolvi acreditar neles. Não quero mais fugir. Embora prisioneiro, aceito essa situação anormal, esperando um dia fazer parte desse povo. Pode parecer um paradoxo. A sua maneira selvagem de tratar os presos não deveria me encorajar a viver nessa terra, mas percebo que eles acham coisa normal os castigos corporais, tanto os presidiários como os soldados. Se um soldado comete uma falta, também recebe umas chicotadas. E, alguns dias depois, esse mesmo soldado conversa com o mesmo cabo, sargento ou oficial que o havia espancado, com a maior naturalidade.

Esse bárbaro sistema é uma reminiscência da ditadura Gómez, que assim tratou o povo venezuelano durante longos anos. O costume sobreviveu, de modo que um chefe civil ainda castiga os habitantes que estão sob a sua jurisdição dessa maneira, isto é, com algumas chibatadas.

É graças a uma revolução que estou em vésperas de ser libertado. Um golpe de Estado, meio civil e meio militar, derrubou da sua poltrona o presidente da República, General Angarita Medina, um dos maiores liberais que a Venezuela conheceu. Era tão bom, tão democrata, que não soube ou não pôde resistir ao golpe de Estado. Ao que dizem, recusou-se categoricamente a derramar o sangue de seus patrícios para se manter no poder. É certo que esse grande militar democrata não estava a par do que se passava em El Dorado.