Às 8 da noite, Maturette diz ao árabe:
– Venha depois da meia-noite; a essa hora, a gente vai poder ficar junto mais tempo.
O árabe diz que virá depois da meia-noite. À meia-noite em ponto estamos prontos. O árabe entra lá pela meia-noite e quinze, vai direto para a cama de Maturette, puxa os pés dele e segue para as latrinas. Maturette entra com ele. Arranco o pé da minha cama, que faz um pouco de barulho ao cair. Do lado de Clousiot nada se ouve. Tenho que ficar atrás da porta dos banheiros e Clousiot vai-se aproximar para chamar sua atenção. Depois de vinte minutos de espera, tudo acontece muito rápido. O árabe sai dos banheiros e, surpreso de ver Clousiot, diz:
– O que é que você está fazendo aí, de pé no meio da sala a esta hora? Vá dormir.
Na mesma hora leva uma pancada em plena nuca e cai sem um ruído. Rápido, visto suas roupas, calço seus sapatos, arrasto-o para debaixo de uma cama e, antes de escondê-lo completamente, dou-lhe outra pancada na cabeça. É a conta.
Nenhum dos oitenta homens da enfermaria se mexeu. Dirijo-me rapidamente para a porta, seguido de Clousiot e Maturette, vestidos apenas com a camisa, e bato. O vigia abre, eu pego o ferro e tac!, na cabeça dele. O outro, da frente, deixa cair o fuzil, com certeza está dormindo. Antes que reaja, dou-lhe uma pancada. Os meus dois não gritaram, o de Clousiot diz “ha!” antes de desmoronar. Os meus dois ficam sentados em suas cadeiras, o terceiro fica esticado no chão em todo o seu comprimento. A gente prende a respiração. Para nós, todos escutaram esse “há!”. Foi muito alto mesmo e, no entanto, ninguém se mexe. Não os levamos para a sala, partimos com os três fuzis. Clousiot primeiro, o rapazinho no meio e eu atrás, descemos pelas escadas mal iluminadas por uma lanterna. Clousiot largou seu pedaço de ferro, eu tenho o meu na mão esquerda e o fuzil na direita. Embaixo, nada. À nossa volta, a noite está escura como breu. Precisamos olhar bem para enxergar o muro, perto do rio; dirigimo-nos rapidamente para lá. Chegando ao muro, faço escadinha. Clousiot sobe, fica escarranchado, puxa Maturette, depois eu. Escorregamos na escuridão do outro lado do muro. Clousiot cai de mau jeito dentro de um buraco e machuca o pé; eu e Maturette chegamos bem. Levantamos, abandonamos os fuzis antes de saltar. Quando Clousiot vai levantar, não consegue, diz que está com a perna quebrada. Deixo Maturette com Clousiot e corro até o canto do muro, segurando com a mão na parede. Está tão escuro, que não percebo quando chego ao fim do muro, minha mão cai e bato com o queixo. Do lado do rio ouço uma voz que diz:
– São vocês?
– Sim. É Jesus?
– É.
Ele acende um fósforo por um instante. Vejo onde ele está. Entro na água, chego até ele. São dois.
– Suba o primeiro. Quem é?
– Papillon.
– Bom.
– Jesus, precisa voltar um pouco mais para cima, meu amigo quebrou a perna caindo do muro.
– Então pegue essa pá e reme.
Os três remos afundam na água e o barco faz depressa os 100 metros que nos separam do lugar onde os outros dois devem estar. Não se enxerga nada. Chamo:
– Clousiot!
– Não fale, diabo! – diz Jesus. – Enflé, rode a pedra do isqueiro. Brilham algumas faíscas, eles perceberam. Clousiot assobia entre os dentes: é um assobio que não faz barulho, mas a gente escuta perfeitamente. Parece o silvo de uma cobra. Assobia sem parar, conduzindo-nos perto dele. Enflé desce, carrega Clousiot nos braços e o coloca na barca. Maturette sobe também, depois Enflé. Somos cinco e a água chega a dois dedos da borda do barco,
– Não façam nenhum movimento sem avisar – diz Jesus. – Papillon, pare de remar, coloque a pá sobre os joelhos. Força, Enflé!
E rapidamente, com a ajuda da correnteza, a barca entra noite adentro.
Quando passamos, depois de 1 quilômetro, diante da penitenciária escassamente iluminada por um velho gerador, estamos no meio do rio, navegando a uma velocidade incrível, levados pela correnteza. Enflé levantou o remo. Somente Jesus, com o cabo do seu colado à coxa, mantém o equilíbrio do barco. Não rema, só dirige.
Jesus diz:
– Agora, a gente pode falar e fumar. Deu tudo certo, acho. Tem certeza de que não matou ninguém?
– Acho que não.
– Diabo! Você me tapeou, Jesus! – diz Enflé. – Você disse que era uma fuga sem problema nenhum, no entanto é uma evasão de condenados, pelo que consegui entender.
– Pois é, são condenados, Enflé. Não quis falar para você, senão você não me ajudava e eu precisava de um homem: Não tem nada. Se eles pegarem a gente, eu fico com toda a responsabilidade.
– Certo, Jesus. Pelas 100 pratas que você me deu, não quero arriscar o meu pescoço se tiver um morto, nem a prisão perpétua se tiver algum ferido.
Então eu digo:
Enflé, vou dar de presente 1 000 francos para vocês dois.
– Tá certo, então, chefe. Regular. Obrigado, a gente morre de fome na aldeia, é pior estar livre do que preso. Pelo menos, preso, a gente tem comida todos os dias e roupa.
– Chefe – diz Jesus a Clousiot -, está sofrendo muito?
– Vai indo – diz Clousiot. – Mas como é que vamos fazer com minha perna quebrada, Papillon?
– Vamos ver. Para onde a gente vai, Jesus?
– Vou esconder vocês numa enseada a 30 quilômetros da saída do mar. Vocês vão ficar lá oito dias, para deixar esfriar o negócio da perseguição dos guardas e dos caçadores de homens. Precisa dar a impressão de que vocês saíram nesta mesma noite do Maroni e entraram no mar. Os caçadores de homens têm umas canoas sem motor, essas canoas são o maior perigo. Fogo, falar, tossir podem ser fatais se eles estiverem por perto, escutando. Os guardas têm uns barcos a motor muito grandes para entrar na enseada, podem tocar o fundo.
A noite fica clara. São quase 4 horas da manhã quando, depois de ter procurado bastante tempo, damos finalmente com o local que só Jesus conhece e entramos na mata. O barco achata os pequenos arbustos, que, após passarmos, tornam a se endireitar atrás de nós, formando uma cortina protetora bem fechada. Precisaria ser um adivinho para saber que ali há água suficiente para dar passagem a um barco. Entramos, penetramos na floresta durante mais de uma hora, afastando os galhos que barram a nossa passagem. De repente encontramo-nos numa espécie de canal e paramos. A margem está verde de grama limpa, as árvores são imensas e a claridade (são 6 horas) não chega a penetrar no meio da folhagem. Debaixo dessa abóbada imponente, os gritos de milhares de animais desconhecidos. Jesus diz:
– É aqui que vocês vão ter que esperar oito dias. Volto no sétimo dia, para trazer mantimentos.
Ele tira de baixo de uma vegetação cerrada uma pequena canoa de uns 2 metros. Dentro dela há dois remos. Ê com esse barco que ele vai voltar, com a maré montante, para Saint-Laurent.
Só então vamos ocupar-nos de Clousiot, que está deitado na margem. Veste ainda a camisa, mas tem as pernas nuas. Com o machado, arranjamos uns galhos secos do formato de ripas. Enflé puxa então o pé de Clousiot, que, suando gotas enormes, num certo momento diz: “Pare! Nessa posição dói menos, o osso deve estar no lugar”. Colocamos as ripas e as amarramos com a corda de cânhamo nova que está dentro da canoa. Ele fica aliviado. Jesus tinha comprado quatro calças, quatro camisas e quatro malhas de lã dos deportados. Maturette e Clousiot se vestem, eu fico com as roupas do árabe. Tomamos um pouco de rum. É a segunda garrafa que esvaziamos desde a partida: esquenta, felizmente. Os mosquitos atacam a gente parar: precisamos sacrificar um pacote de fumo. Colocamos o de molho numa cabaça e passamos o caldo da nicotina no rosto, mãos e nos pés. As malhas são de lã e esquentam, apesar dessa umidade que penetra na gente.
Enflé diz:
– Vamos embora. E as pratas que você prometeu?
Afasto-me um pouco e volto com uma nota de 1 000 novinha em folha.
– Até logo, não saiam daí durante oito dias – diz Jesus. A gente volta daqui a sete dias. No oitavo dia, vocês embarcam. Nesse Tempo todo façam as velas e arrumem o barco, cada coisa no seu lugar, coloquem os gonzos do leme, que não está montado. Se passarem dez dias e a gente não voltar, é porque fomos agarrados na aldeia. Como o negócio engrossou com o ataque ao guarda, vai ter uma encrenca danada.