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Por outro lado, Clousiot informa que ele não deixou o fuzil perto do muro. Jogou-o por cima do muro e o rio fica tão perto (ele não sabia disso), que certamente o fuzil caiu na água. Jesus diz que é bom isso, porque, se ele não foi encontrado, os caçadores de homens vão pensar que estamos armados. Eles são os mais perigosos, mas não devemos ter medo: só estão armados com um revólver e um facão e, pensando que temos fuzis, não vão aventurar-se. Até logo, até logo. Se nos descobrirem e precisarmos abandonar a canoa, vamos ter que subir o riacho até a floresta; com a bússola, iremos para o norte. Há muitas chances de a gente encontrar, depois de dois ou três dias de marcha, o presídio da morte chamado Charvein. Lá vamos ter que pagar a alguém para avisar Jesus de que estamos naquele lugar. Vão embora os dois velhos condenados. Alguns minutos depois, sua canoa já desapareceu, não se ouve nada e não se vê nada.

A claridade do dia penetra na floresta de uma maneira toda particular. Parece que estamos embaixo de uma abóbada que recebe o sol pelo alto e não deixa passar nenhum raio. Começa a esquentar. Então, Maturette, Clousiot e eu nos sentimos sós. Primeiro reflexo: damos risada. Tudo correu com a maior facilidade. O único inconveniente é a perna de Clousiot. Ele diz que agora, que ela está presa nas ripas, vai bem. A gente pode esquentar um café. É rápido; acendemos o fogo e tomamos uma bela caneca de café preto cada um, adoçado com açúcar mascavo. Está delicioso. Gastamos tanta energia desde ontem à noite, que não temos coragem de olhar as coisas nem de inspecionar o barco. A gente vê depois. Estamos livres, livres, livres. Faz exatamente 37 dias que chegamos à colônia. Se a fuga der certo, minha prisão perpétua não foi muito longa. Eu falo: Senhor presidente, quanto tempo duram os trabalhos forçados na Prisão perpétua, na França?” E damos uma gargalhada. Maturette também tem prisão perpétua. Clousiot diz: “Não vamos cantar vitória, ainda. A Colômbia está longe, e esse barco feito com uma árvore queimada me parece bem pouca coisa para entrar no mar”.

Não respondo nada porque eu, francamente, até o último momento, pensei que a canoa fosse levar-nos ao lugar onde estaria o barco apropriado para entrar no mar. Descobrindo que estava enganado, não tive a coragem de dizer nada, para não influenciar mal os meus amigos logo no começo. Por outro lado, como Jesus parecia achar tudo aquilo muito natural, não queria dar a impressão de não conhecer os barcos habitualmente utilizados para fugas.

Passamos este primeiro dia falando e tomando contato com essa mata tão desconhecida. Os macacos e pequenas espécies de esquilos fazem terríveis cabriolas em cima das nossas cabeças. Um bando de pequenos porcos selvagens veio beber água e tomar banho. Havia pelo menos 2 000. Entram na enseada e nadam, arrancando as raízes que estão penduradas. Um jacaré sai de não sei onde e agarra a pata de um porco, que começa a se esgoelar como um louco; então, os porcos atacam o jacaré, sobem em cima dele, tentando mordê-lo na junção de sua enorme boca. A cada golpe de rabo, o jacaré faz dançar um porco à direita ou à esquerda. Um deles morre e bóia com o ventre para o ar. Imediatamente, seus companheiros o comem. A enseada está cheia de sangue. O espetáculo dura vinte minutos, o jacaré foge debaixo da água. Não o vimos mais.

Dormimos bem e de manhã fazemos café. Tiro minha malha, para me lavar com um sabonete grande de Marselha que foi encontrado no barco. Com minha navalha, Maturette corta como pode minha barba, depois barbeia Clousiot. Ele, Maturette, não tem barba. Quando pego a malha para vestir, dela cai uma aranha enorme, aveludada e de uma cor negro-violeta. Os pêlos são muito compridos e acabam, na ponta, com uma bolinha platinada. Deve pesar pelo menos uns 500 gramas, é enorme e eu a esmago com nojo. Tiramos todas as coisas do barco, inclusive o pequeno tonel de água. A água está violeta, acho que Jesus colocou permanganato demais dentro dela, para impedir que apodreça. Numas garrafas bem fechadas estão fósforos e lixas. A bússola é daquelas de crianças: marca somente norte, sul, leste e oeste, e não tem graduação. O mastro tem só 2 metros e 50 de altura. Cortamos os sacos de farinha em trapézio e colocamos uma corda na volta toda, para reforçar a vela. Faço uma pequena vela triangular, o cutelo, cortada em forma de triângulo isósceles: ajudará a levantar o nariz do barco na onda.

Quando colocamos o mastro, percebo que o fundo do barco não é sólido: o buraco onde se fixa o mastro está comido e perigosamente gasto. Ao colocarmos as dobradiças que segurarão o leme, os parafusos entram como se a madeira fosse manteiga. Este barco está podre. Aquele porco do Jesus está querendo matar a gente. Contrariado, mostro isso tudo aos dois, não tenho o direito de esconder deles a situação. O que é que vamos fazer? Quando Jesus vier, vamos obrigá-lo a encontrar um barco mais seguro para a gente. Para isso vamos desarmá-lo e eu, armado com faca e machado, vou partir com ele para procurar outro barco na aldeia. É um grande risco, mas é um risco menor do que entrar no mar com um caixão de defunto. Os mantimentos estão em ordem: há um garrafão de óleo e umas caixas cheias de farinha de mandioca. Com isso, a gente vai longe.

Hoje de manhã assistimos a um curioso espetáculo: um bando de macacos de focinho cinzento brigou com uns macacos de focinho preto e aveludado. Maturette, no meio da baderna, levou um pedaço de galho na cabeça e está com um galo grande como uma noz.

Há cinco dias e quatro noites que estamos aqui. Nesta noite choveu torrencialmente. Abrigamo-nos com folhas de bananeiras selvagens. A água escorria em cima de seu verniz, mas não nos molhamos muito, só os pés. Hoje de manhã, tomando café, penso como Jesus é um criminoso. Ter-se aproveitado de nossa inexperiência para empurrar para a gente este barco podre! Para economizar 500 ou 1 000 francos, ele manda três homens à morte certa. Pergunto a mim mesmo se, depois de obrigá-lo a me fornecer um outro barco, não vou matá-lo.

Gritos de gaios alvoroçam todo o nosso pequeno mundo, gritos tão agudos e irritantes, que digo a Maturette para pegar o facão e ir ver o que é. Ele volta depois de cinco minutos e me faz sinal para segui-lo. Chegamos a um local a uns 150 metros do barco e vejo, pendurado no ar, um maravilhoso faisão (ou uma ave parecida com um faisão), duas vezes maior que um galo grande. Está preso num laço e pendurado pela perna num galho. Com um golpe de facão, corto seu pescoço, para acabar com aqueles gritos horripilantes. Suspendo-o, para calcular seu peso, tem pelo menos 5 quilos. Seus esporões são como os dos galos. Decidimos comê-lo, mas, refletindo, achamos que o laço foi colocado lá por alguém e que deve haver outros. Vamos ver. Voltamos para o lugar e encontramos uma coisa curiosa: é uma verdadeira barreira de 30 centímetros de altura, feita de folhas e cipós entrelaçados, a uns 10 metros da enseada. Essa barreira corre paralelamente à água. De vez em quando, uma porta, e na porta, disfarçado por uns galhos pequenos, um laço de arame preso por uma extremidade a um galho de árvore dobrado. Logo imagino que o animal deve chocar com a barreira e percorrê-la até encontrar uma passagem. Quando encontra a porta, passa, mas seu pé fica preso no arame, soltando o galho. Fica então pendurado no ar, até que o proprietário das armadilhas venha buscá-lo.

Essa descoberta nos preocupa. A barreira parece bem conservada e não é velha; corremos o perigo de ser descobertos. Não podemos acender fogo de dia, mas de noite o caçador não vai aparecer. Decidimos fazer um turno de guarda para vigiar, olhando sempre na direção das armadilhas. O barco está escondido embaixo dos galhos e todo o material está na floresta.