Estou de guarda no dia seguinte, às 10 horas. De noite comemos o faisão ou galo, não sabemos bem. O caldo nos fez um bem enorme e a carne, mesmo cozida, era deliciosa. Cada um comeu duas tigelas. Agora estou de guarda. Mas, intrigado com umas formigas-de-mandioca enormes, pretas, cada uma carregando grandes pedaços de folhas, que levam para um enorme formigueiro, esqueço minha guarda. Essas formigas têm mais ou menos 1 centímetro e meio de comprimento e ficam erguidas sobre as patas. Cada uma delas carrega pedaços enormes de folhas. Sigo-as até a árvore que estão descascando e vejo toda uma organização. Antes de tudo, há as cortadeiras, que só preparam os pedaços. Rapidamente cortam com suas tesouras uma enorme folha de uma espécie de bananeira, recortam uns pedaços, todos do mesmo tamanho, com uma habilidade incrível, e os pedaços caem no chão. Embaixo há uma fileira de formigas da mesma espécie, mas um pouco diferentes. Tem do lado da mandíbula uma risca cinzenta e estão em semicírculo, fiscalizando as carregadeiras. Estas chegam pela direita, em fila, e vão para o formigueiro pela esquerda. Rápidas, elas apanham sua carga antes de entrar na fila, mas, de vez em quando, na pressa de se carregarem e entrarem na fila, criam um atravancamento. Então intervêm as formigas policiais e empurram cada uma das operárias para o lugar que elas devem ocupar. Não consigo compreender que falta grave cometeu uma operária, mas ela é retirada da fileira por duas formigas policiais: uma arranca-lhe a cabeça; a outra corta-lhe o corpo em dois, na altura da cintura. Duas operárias são obrigadas a parar pelos guardas; colocam no chão seu pedaço de folha, fazem um buraco com suas patas, e as três partes da formiga, cabeça, peito e o resto do corpo, são enterradas e depois cobertas de terra.
Estava tão absorvido, olhando esse pequeno mundo e seguindo os soldados, para ver se sua vigilância ia até a entrada do formigueiro, que fiquei totalmente surpreso quando uma voz disse:
– Não se mova, ou você é um homem morto. Vire.
É um homem de peito nu, short cáqui, calçado com um par de botas de couro vermelho. Segura na mão um fuzil de dois canos. É de estatura média, atarracado, queimado pelo sol. É careca e seus olhos e seu nariz estão cobertos por uma máscara azul forte, tatuada. Bem no meio da testa, está tatuada também uma barata.
– Você está armado?
– Não.
– Está sozinho?
– Não.
– Quantos vocês são?
– Três.
– Leve-me até os seus amigos.
– Não posso, porque um deles está com um fuzil e não quero que você seja morto antes de saber suas intenções.
– Ah! Então não se mova e fale delicadamente. São vocês os três caras que fugiram do hospital?
– Somos.
– Quem é Papillon?
– Sou eu.
– Muito bem, você pode dizer que fez uma revolução na aldeia com sua fuga! A metade dos libertos está presa no quartel de polícia.
Ele se aproxima de mim e, abaixando o cano do fuzil para o chão, estende a mão para mim e diz:
– Sou o bretão mascarado, já ouviu falar de mim?
– Não, mas estou vendo que você não é um caçador de homens.
– Você tem razão, coloco armadilhas aqui para apanhar aves. O tigre deve ter comido uma, a não ser que tenham sido vocês.
– Fomos nós.
– Você quer café?
Num saco que ele carrega nas costas há uma garrafa térmica; ele me dá um pouco de café e toma também. Digo-lhe:
– Venha ver meus amigos.
Ele vem e se senta com a gente. Ri calmamente da história do fuzil e diz:
– Eu acreditei mesmo porque nenhum dos caçadores de homens quis vir procurar vocês; todo mundo acha que estão com um fuzil.
Explica que vive na Guiana há vinte anos e está livre há cinco. Tem 45 anos. Por causa dessa besteira que ele fez, de tatuar aquela máscara no rosto, a vida na França não lhe interessa. Adora a floresta e vive exclusivamente dela: pele de cobra, pele de tigre, coleção de borboletas e sobretudo a caça ao hocco vivo, o pássaro que nós comemos. Ele os vende a 200 ou 250 francos. Eu me ofereço para pagar, ele recusa, indignado. Conta-nos o seguinte:
– Esse pássaro selvagem é um galo do mato. Claro que ele nunca viu nem galinha, nem galo, nem homens. Bom, eu apanho um, levo até a aldeia e o vendo logo para alguém que tenha um galinheiro, porque ele é muito procurado. Bom. Sem cortar as asas, sem fazer nada, você o coloca à tardinha, no princípio da noite, dentro do galinheiro e de manhã, quando a gente abre a porta, ele fica plantado na frente e parece que conta as galinhas e os galos que vão saindo. Ele os segue e, comendo com eles, olha com os olhos bem abertos para todos os lados, para baixo, para cima, nos arbustos em volta. É um cão de guarda sem igual. De noite, fica na porta e não se entende como sabe quando falta uma galinha ou duas, mas sabe, e vai procurá-las. E, galo ou galinha, ele os bota para dentro a grandes golpes de bico, para ensiná-los a chegar na hora. Mata ratos, cobras, aranhas, musaranhos, centopeias e, assim que uma ave de rapina aparece no céu, manda todo mundo se esconder no meio do capim, enquanto ele a enfrenta. Nunca mais sai do galinheiro. Esse pássaro extraordinário, nós o comemos como um galo vulgar. O bretão mascarado diz que Jesus, Enflé e mais uns trinta libertos estão na cadeia, no posto de polícia de Saint-Laurent, onde iam olhar os libertos para ver se reconheciam alguém que rondava em volta do prédio de onde nós saímos. O árabe está na masmorra do posto, incomunicável, acusado de cumplicidade. As duas pancadas que levou não provocaram ferimento algum, enquanto os guardas têm um ligeiro inchaço na cabeça. “Eu não fui incomodado porque todo mundo sabe que nunca me preocupei em preparar uma fuga.” Diz que Jesus é um grandessíssimo porco. Quando falo do barco, ele quer vê-lo. Depois de examiná-lo, exclama:
– Mas ele ia matar vocês, esse cara! Nunca essa canoa agüentaria mais de uma hora no mar. Com a primeira onda um pouco forte, quando bater o fundo na água, vai se partir em dois. Jamais embarquem nisso aí, é um suicídio.
– E então, o que é que vamos fazer?
– Você tem um pouco de grana?
– Tenho.
– Vou-lhe dizer o que é que você deve fazer, e mais do que isso, vou ajudar você, você merece. Vou ajudar você e seus amigos a saírem dessa e não quero nada.
“Não devem chegar perto da aldeia de jeito nenhum. Para arranjar uma boa embarcação, precisam ir até a Ilha dos Pombos. Nessa ilha se encontram uns duzentos leprosos. Não existem guardas e nenhuma pessoa sadia vai até lá, nem o médico. Todos” os dias, uma barca leva os mantimentos para 24 horas, crus. O enfermeiro do hospital manda uma caixa de medicamentos aos dois enfermeiros, também leprosos, que tomam conta dos doentes. Ninguém, nem guarda, nem caçadores de homens, nem padre, desce na ilha. Os leprosos vivem numas palhoças pequenininhas construídas por eles mesmos. Têm um salão onde se reúnem. Criam galinhas e patos que servem para melhorar o trivial. Oficialmente, não podem vender nada fora da ilha, mas traficam clandestinamente com Saint-Laurent, Saint-Jean e os chineses de Albina, na Guiana Holandesa. São todos assassinos perigosos. Raramente se matam entre si, mas praticam inúmeras malvadezas quando saem clandestinamente da ilha, aonde voltam para não serem presos pelos crimes cometidos. Para essas excursões têm alguns barcos, roubados na aldeia vizinha. O crime maior é ter um barco. Os guardas atiram em todo barco que entra ou sai da Ilha dos Pombos. Os leprosos afundam seus barcos, enchendo-os de pedras: quando precisam de uma embarcação, mergulham para tirar as pedras e a barca vem à tona. Tem de tudo na ilha, de todas as raças e de todas as regiões da França. Conclusão: sua canoa só serve dentro do Maroni e, ainda assim, pouco carregada. Para entrar no mar, precisa encontrar outro barco, e o melhor é ir até a Ilha dos Pombos.